domingo, 14 de junho de 2009

Para quê gastar Latim

.


to latim - timbalada
.


Mal abriu a porta deu com Deolindo do outro lado da rua frente ao portão.
-Já almoçaste? Estás aí há muito tempo?
-Já, cheguei mesmo agora, disse com todos os dentes que lhe restavam na boca. E puseram-se a caminho do Liceu pelas mesmas sombras. Chegados lá não viram vivalma pois o segundo toque já tinha dado, a custo, não tanto como isso, Docelinda, face à falta garantida, soçobrou à ideia de ficarem a estudar Latim debaixo da frondosa mangueira. Da língua morta Docelinda ensinou qualquer coisa, em troca ficou a saber o que era uma língua viva. É justo, né?

Está visto que estes vão por maus caminhos.
A vida destina-nos uma trilha com bifurcações que nos leva ao destino final. Pois é, o que um simples beijo pode fazer! Docelinda fugou pela primeira vez às aulas e Deolindo, naquele ano, fê-lo pela última vez. Ora toma.
Glória, glória que aqui, quase, se acabava a história mas mais está para vir.
É fácil de adivinhar que pudemos ver, terminadas as aulas, Deolindo acompanhando Docelinda com o sol pondo-se nas suas costas. Uma única sombra feita de dois indica-lhes o caminho que eles não seguiram. Tomaram rumo mais largo em passo cada vez mais lento contornando o Largo da Sagrada Família, mão dada afoita só apartada quando chegaram à rua dela.
A despedida foi um breve aceno sublinhado por um intenso olhar que dizia mais do que aquilo que uma convencional A4 suporta.

Tirou a chave do vaso que não foi precisa, Dona Fernanda de Miranda abriu-lhe a porta; sem lhe dar tempo para receber um beijo virou-lhe as costas refugiando-se em afazeres já feitos.

-Mãe, estás zangada comigo, dando-lhe o beijo antes recusado.
De novo com aquele desavergonhado, foi o invocado.
-Mas, tu nem o conheces! Como podes dizer isso!
Gente como aquela conhecia, de há muito, de olhos fechados, foi argumentado.
-Não és tu que dizes que não devemos julgar pelas aparências?
-E não és tu que dizes que eu nem sempre tenho razão?
-É. E agora confirmo.

Tal ia a moenga, hei! O melhor é, para já, diz a razão, é pôr cada uma com a sua remetendo Docelinda para o quarto à volta da “Initia Latina” auxiliada pelo Francisco Torrinha, pelo meio metia-se quando em vez um Deolindo virtual a custo afastado.

No outro lado da cidade, a alguns suspiros de distância, Deolindo encetava um caderno, escrevia :
Rosa - Rosae
Rosae - Rosarum
Rosae - Rosis
Rosam - Rosas
Rosa - Rosis
Rosa - Rosae


-Deolindo anda comer filho.
-Já vou, vó. Deixa-me só acabar uma coisa.

No fim era o verbo:

Amo, amas, amare, amavi, amatum.
Amo, amas, amare, amavi, amatum.
Amo, amas, amare, amavi, amatum.
Amo, amas, amare, amavi, amatum.
*
==================**==================
Iaiá, iaiá...

Tô vira-lata, tá
Cachorro vadio
E você saca, he, he
Me deixa no ciúme

Alice no país
Da Amaralina sol
Quem sabe distinguir
O amor que eu vivi
A lenda da linha linda é você
Mistura de portuguesa
Com negro

Do fundo da agulha
Onde passou o camelo
Eu sinto sua figura sossego
Sossego, sossego, sossego

Tô latim
Feito lata tim
Feito lata de atum
Feito lata d'água

Alguém quer meu país
Metade animal
Metade matagal
Metade carnaval

Você é a pedra da minha mina de santeiro
Me cura de brotoeja com beijo
Do fundo da agulha
Onde passou o camelo...

1 comentário:

Avó Ofélia disse...

Isto é uma autêntica viagem no tempo... que bem escreve este homem!
Lembrei-me do Jacques Brel e da canção Rosa, rosae
http://www.youtube.com/watch?v=v6rLLE48RL0