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quarta-feira, 25 de abril de 2007

Cá o rapaz é assim VII






Arregalou os olhos e virou-se para a prima, dando com um sorriso d’orelha a orelha.
Contagiada, acabou por rir também, mudando de assunto.
-Mas o que é que pensas fazer agora?
Dina arqueou a sobrancelha, desfez o sorriso, olhou para o tecto.
-Quem é que te disse que estou a pensar? Não te preocupes, cortou.
-Mas…
-Mas nada. Virando-se para ele:
-Estás a gostar assim tanto? Tens de me dar uma ajuda, não estou com grande apetite.
Guta remexeu-se na cadeira, endireitou ainda mais as costas e resolveu atestar as baterias para o outro lado. –O que faz?
-Sou agente comercial, produtos de cosmética, respondeu ele, à inevitável pergunta. Trabalho com diversas marcas, se quiser alguma coisa dê-me uma lista que eu arranjo-os a um preço jeitoso.
Foi a vez de Dina mostrar alguma surpresa.

Entre trivialidades o almoço foi decorrendo melhor do que às tantas se adivinhava. De nota, somente o entrar de um casal, que foi encaminhado para um canto acolhedor. Teriam passados despercebidos não fosse o enlevo da rapariga em contraste com o mal disfarçado distanciamento do acompanhante. Pai e filha não são com certeza, pensou ele após uma análise sumária.
Acabou mesmo por dar uma ajuda a Dina que de facto mal tinha tocado do que se servira, e bem pouco tinha sido.

Chegada a altura da sobremesa, não houve unanimidade. Bolo de mel (de cana) para ele, salada de frutas tropicais frescas (papaia, abacaxi, manga), para Dina, enquanto Guta optou pela mousse de "maracujá".
-Dia não são dias, desculpou-se ela, vitima de alguma interior culpa.

A refeição chegava ao fim, Guta querendo aparentar naturalidade, acabou por abordar Dina, desajeitadamente. –Onde é que estás, dá-me o teu contacto. Mas foi desviada para canto.
-Dá-me tu o teu, depois ligo-te.
Acabaram por pedir os cafés. Atenciosamente foi-lhes oferecido um vinho da Madeira, recomendado como excelente digestivo. Ele declinou sendo-lhe então sugerido uma aguardente.
–Caseira, sublinhou o empregado.
–Isso sim, anuiu ele.
A simpatia não ficou por ali, aceitou o charuto oferecido.

-Para onde vais, Dina?
-Deixa-nos numa paragem de autocarros.

A negociação continuou tendo Dina, por fim, aceite que os deixassem no Centro Comercial.
A volta decorreu sem o entusiasmo da ida. Antes de os deixar Guta cedeu-lhes o número do telemóvel. A ela fez-lhe prometer que lhe ligaria; a ele que aceitava os préstimos. Iria ver do que precisava que depois lhe diria.
Com isto se despediram.
Guta viu-os serem engolidos pela pequena multidão que entrava e saía do centro comercial.
Ficou-lhe a imagem dele mochila dela a tiracolo e a dela apoiada no braço dele.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Cá o rapaz é assim VI




De olho no plasma e no hall, lá estava ele ainda não era uma, o olhar periférico confirmava que se estava em dia não. Ou o gagêdo perdera o medo à chuva, ou já gastara o ordenado. Ainda não batia a uma e já se anunciavam as notícias: Bomba aqui, bomba acolá e por cá também, cum canudo! Começaram a juntar-se pessoas à volta do ecrã, os comentários cruzavam-se, entre tipos que jamais se falariam; as emoções afloravam, era altura de bazar, queria lá saber se o gajo tinha ou não tinha canudo, ala que se faz tarde.
Pouco esperou para as ver aparecer. Guta desculpou-se pelo ligeiro atraso, Dina rindo-se:
-Não é nada a que não estejas habituado, não é?
Olhou-as, acabando por rir com vontade, ao ler a piscadela de olho, em jeito de autocrítica.
Ao onde vamos de Guta, Dina de pronto sugeriu o Madeirense, bem acolhido pela anfitriã.
-Gosta de espetada?
-Se gosta! Disse Dina, em nova risada.
-Gosto, disse ele, mais do que divertido, agradado com a boa disposição da amiga. Voltava a ser a velha Dina, maliciosa e provocadora.
Dina enfiou-lhe o braço e arrastou-o em direcção às escadas, ele resistindo, apontou-lhe o caminho certo, na direcção contrária: -É lá em cima. – Não é não, teimou ela.
Deixando-se arrastar, meio confuso, lá foi ele no meio das duas em direcção ao parque, até que o esclareceram que o Madeirense era outro.

Apalpou os estofos de coiro mirando o espelho retrovisor onde se reflectiam uns olhos agradáveis, emoldurados por um cabelo despretensiosamente arranjado. Deixou-se embalar no movimento do carro e nos doces cheiros que o envolviam: o perfume dela, discreto, assomava ao de carro novo. O tagarelar delas era uma trilha sonora perfeita para o desenrolar da paisagem que fugia e se ia transformando de candeeiros em arvores e por fim em Tejo com a outra margem por fundo, até se deterem junto a um restaurante que prolongava até ao passeio um esmerado toldo.
Sentiu-se desolado pelo término da viagem, como se despertasse de um sonho agradável.
O porteiro abriu-lhes a porta, cumprimetou cerimoniosamente Guta, observou Dina e lançou-lhe um olhar reservado e de suspeição. d'aqui

Até chegarem à mesa, de mão em mão, passaram por mais dois empregados. Guta recusou a mesa que lhe sugeriram e escolheu uma ao pé da janela. Ia a sentar-se mas foi sustido pela mão de Dina, o empregado ajeitava a cadeira a Guta, e ele, por sua vez, resolveu fazer de criado, ajudando Dina a sentar-se; ficou na dúvida se era isso que deveria ter feito, sentando-se por sua vez.
Ao aproximar-se outro empregado com os cardápios encadernados em couro bordeau, Guta atalhou encomendando três espetadas, acompanhadas de legumes. Ao rapaz coube iniciar um incontido calculo mental tendente a apurar se umas batatitas estariam ou não incluídas na tal categoria de legumes.
Assim começava uma guerra que travou estoicamente, em duras batalhas: a dos copos e a dos talheres à qual se juntaram pequenas escaramuças como a do guardanapo. A tudo respondeu à altura graças à estratégia adoptada, e de acordo com os ensinamentos da velha que tanto o chateou em miúdo: “Nota bem, antes de tocares no que quer que seja espera que eu o faça e depois faz como eu.” Ainda parecia que a estava a ver mas o que é certo é que deu resultado, um resultadão! d'aqui

Não estava preparado era para a escolha do vinho, mas porra, pensou ele, Quinta da Bacalhoa, 60 €!, não há-de ser mau e deve embebedar com certeza. Venha ele, que a gaja não deve ter comprado o Audi a prestações.
Olhou para ela a ver se lhe tinha dado o treco, mas recebeu um sorriso com o: -Não poderia ter escolhido melhor.

Soubesse eu disto e na verdade tinha posto o rapaz a escolher um de 120, mas andemos que não tarda, faz-se tarde, e cá pra mim isto já começa a chatear. Pessoal quem quiser salte aqui mas eu tenho que continuar.

Engoliu em seco e pensou nos nove euros que tinha no bolso porque aos vinte bem dobradinhos não queria fazer contas. Provou o vinho e acenou com a cabeça. O que ele queria dizer nem eu sei mas temo que não fosse nada abonatório ao princípio da relação qualidade-preço.
Começaram então a servir uns pratinhos entre os quais estavam uns rissóis que não passavam em qualquer outro lado. Lá bons eram eles mas com um tamanhinho daqueles nem ao diabo dum forreta passaria pela cabeça fazê-los. Lá no bairro seria motivo para protestos ainda que a um terço da tabela os tentassem impingir.
Lá foi morfando o que lhe parecia a si caber, acabando por se estender ao que em consciência não lhe competia, colhendo proveito do cuidado que Guta tinha com as anquinhas e da manifesta falta de apetite da Dina.
d'aqui
Já havia varrido o que se apresentara na mesa, à excepção claro, de umas iguarias que a vergonha e o instinto de decência aconselham, quando chegaram, com pompa e circunstancia, os três estranhos cabides de ferro, donde pendiam nacos de carne à mistura com pimentos e cebola, escorrentes em apoteótica alegria de um molho que largava um cheirinho, capaz de fazer um homem esquecer-se de uma gaja boa.
Serviu-se com a delicadeza que a circunstancia pedia, levou o primeiro pedaço à boca, semicerrou os olhos deliciado em êxtase... quando se apercebeu que Guta o interpelava.
-Está a gostar?
-Porra, saiu-lhe, d’isto? Mas isto, isto... é uma prova da existência de Deus!

* há diefe, como promessa a cumprir.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

Cá o rapaz é assim V






A conversa não era para ele e dali não levava nada, mas jogo para situações destas tinha ele de sobra.
-Vou dar uma volta, já nos vemos por aí.
Era bom não era? Qual quê!
-Desculpe o nosso entusiasmo, mas não nos víamos há… Vai para seis anos, não é Dina?
-Mais ou menos, sim, seis ou sete.
-Esperamos aqui por si, depois podíamos ir almoçar juntos.
Não fosse a Dina e bem podia a “madama” esperar, e quanto ao almoçar já não lhe restava mais que nove euros e o tabaco a chegar ao fim.
-Eu não almoço, disse Dina.
-E eu desculpem, tenho qu’ir à casa de banho, rematou como um cheque-mate.
-Então… é meio dia e meio, encontramo-nos ali no hall à uma. Assim mesmo. Disse, aprovou e promulgou, sem consulta prévia, estava publicado, acrescentando: -São meus convidados.
Olhou para Dina, e pelo encolher de ombros e sorriso, convenceu-se que assim seria, pelo que se pôs a andar, decidido a não voltar, caso razões de ordem profissional o impedissem, mas o que é certo é que a crise a todos toca; bateu perfumarias e sapatarias resignando-se, pois o gagêdo como o peixe, dá quando dá, assim lhe ensinara o Tio João, com a infeliz coincidência de tanto não dar nada, como para de repente desatar a dar, não tendo um homem mãos a medir nem meio de conservar todo o bem que bem poderia apanhar.

Assim se perdia o rapaz em recordações. O tio João! Por onde andaria agora? Merda p’rá política, que acabara para os pôr chateados, quando até lá tinham sido unha com carne. O sacana que não tinha onde cair morto e havia de teimar em defender o dono da fábrica, para no fim levar um grandessíssimo pontapé no cú. Acontecimentos destes levam a grandes zangas na vida, como foi o caso da cisão com o seu tio João, somente quinze anos mais velho, pessoa de quem muito gostava e a quem devia a primeira ida às putas. Gajo porreiro, não deixava de ser burro e naturalmente teimoso, pelo que cismava que à porta da missa é que era, e ele, já em processo avançado de auto determinação, clarividente, apontava para os portões das universidades. Mas não há cisão que não dê em coligação, esta é que é a verdade, como atesta o seu caso, mas eu conto: Quiz o acaso que, altas horas da noite, subindo ele o jardim de Entre-Campos visse um estranho acampamento armado no relvado da universidade, onde à volta de uma fogueira, pouco mais de uma dúzia de vultos, com cobertores pela cabeça, levavam até ele os ecos de conversa e risos,


Eu ouvi um passarinho
às quatro da madrugada,
Cantando lindas cantigas
à porta da sua amada.

Ao ouvir cantar tão bem
a sua amada chorou.
Às quatro da madrugada
o passarinho cantou.


foi o bastante para arrepiar caminho para melhor ver de perto e, na verdade vos digo, que em boa hora o fez pois em menos de um esfregar de olhos já estava de caneca de café na mão, embrulhado em cobertor que tinha que dar para dois, acrescentando ao repertório:

Alentejo quando canta,
vê quebrada a solidão;
traz a alma na garganta
e o sonho no coração.

Alentejo, terra rasa,
toda coberta de pão;
a sua espiga doirada
lembra mãos em oração.


Que insistisse o Tio João nas esperas à porta da igreja porque... bem, o resto não cabe nesta história que a ela me tenho de remeter disciplinadamente, sem me deixar arrastar pelos pensamentos do rapaz, esclarecendo contudo que o facto de o cobertor ser partilhado com uma pombinha chamada Dina, não é de todo despiciendo, ficando ainda registado que estavam lançadas as bases de uma futura coligação entre soldados e uma proeminente figura, quadro estreitamente ligado a um educador da classe operaria.

sexta-feira, 30 de março de 2007

Cá o rapaz é assim IV





-Pagas-me um café?
Voltou-se e deu com um sorriso de olhos marcados por velhas e novas rugas, num rosto conhecido. Levantou-se de um salto ao reconhece-la, pelo sorriso retorcido meio terno meio trocista.
-Dina! Cum caneco!
Foi buscar um tamborete e fê-la sentar-se na mesa alta.
-Conta-me, fala-me de ti. Como resposta recebeu um poisar de mão no seu braço e um prolongado baixar de cabeça que revelou o despontar branco dos cabelos que espreitavam sob a última pintura.Com algum constrangimento afagou-lhe a mão e por fim ousou levantar-lha a cabeça que foi cedendo para revelar um olhar húmido e quente.
-E um café que tomas? Perguntou para quebrar o silêncio. Obteve um “carioca” cavo que lhe permitiu levantar-se. Do balcão observou-a: ar distante, queixo apoiado no polegar; achou-a mais magra, bela na sua tez morena, um moreno estranho que logo atribuiu à iluminação. Voltou para a mesa e colocou-lhe o café e um bolo de arroz á sua frente.
–Ainda te lembras! Disse agradecida.
-Dos teus gostos… muito mais do que julgas!
Dina atirou-se ao bolo com vontade mas não passou de meio, entregando-se ao beberricar do café.
O silêncio instalou-se de novo, Dina sem cerimónias serviu-se de um cigarro
-Não comes o resto? Disse levando a mão ao bolo. Como resposta viu, atónito, Dina levar a mão ao bolo e esfrangalha-lo e ao seu manifesto espanto dizer: -Pareceu-me estragado.
-Estragado, um bolo sem creme?
-Vamos dar uma volta por aí? Disse levantando-se e agarrando na mochila outrora preta.
Vamos, disse ele tirando-lha das mãos. Foram pelos corredores quase vazios e um pouco mais à frente detiveram-se na zona dos livros. Dina deambulando familiarmente pelos escaparates, ele seguindo-a a esmo. Dina aqui e acolá pegava, folheava e voltava a depositar livro após livro. Assim passaram de secção em secção, por fim Dina recolheu um “Corto Maltese” e refugiou-se num banco. Ele, por sua vez, sentou-se noutro ao lado e encostad
o a uma coluna observou-a. Dina ia lendo atenta sendo-lhe possível, de certa forma, acompanhar a história pela mudança de expressões de Dina; assim esteve deliciado até se aperceber que o livro ia descaindo sobre o magro peito enquanto Dina cerrava os olhos. Para ali ficou vendo-a, acabando por perceber, pelo suave movimento do livro, que adormecera. O seu tom de pele já não era o mesmo de outrora; apresentava-se mais amarelado, nada que uns dias de praia não corrigiriam, agora que o sol viera para ficar, pensou ele.

Focou a sua atenção na silhueta feminina que aparecera no extremo do corredor.
Elegante, bem arranjada, aproximava-se quase segura até se aperceber da sua presença. Sumiu-se por uma das secções reaparecendo pouco depois. Do limiar do corredor observou-o primeiro a ele e depois Dina; detectou-lhe uma reacção de desagrado ou reprovação enquanto caminhava na direcção deles. Ao passar por Dina olhou-a ostensivamente, parou mesmo, ficando a observa-la atentamente. Viu-a hesitar e sentar-se suavemente no extremo do banco onde Dina repousava. Dina abriu os olhos, sacudiu a cabeça, concentrou o olhar incrédula e, para seu espanto, viu as duas abraçarem-se. Assim ficaram por um momento, ao apartarem-se Dina tinha a mão livre tomada por umas mãos bem arranjadas. Irritou-o o riso em que as duas se envolveram, sentiu-se a mais, mais uma vez, levantou-se incomodado sem saber bem o que fazer, decidiu bater em retirada, mas não teve hipótese, Dina pressentiu a sua reacção, levantou-se dizendo alegremente:
-Guta, quero apresentar-te um velho amigo.
Aproximou-se, declinou o seu nome arrevesado, recebendo em troca uma mão, de costas para cima, meio morta, e um “encantada” que não correspondia, nada, nadinha, à sua expressão. Avaliou-lhe os anéis e afinfou-lhe com um aperto de mão que a fez fazer uma ligeira genuflexão, acompanhada de um risinho nervoso.
***
Garota de Ipanema

Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
é ela menina, que vem e que passa
Num doce balanço a caminho do mar

Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
é a coisa mais linda que já vi passar

Ai! Como estou tão sozinho
Ai! Como tudo é tão triste
Ai! A beleza que existe
A beleza que não é só minha
E também passa sozinha

Ai! Se ela soubesse que quando ela passa
O mundo interinho se enche de graça
E fica mais lindo por causa do amor
Só por causa do amor...

Vinicius de Moraes

domingo, 25 de março de 2007

Cá o rapaz é assim III

Olhou para o relógio antes de o afivelar no pulso. Tinha bastante tempo a bicha, desculpem, a fila só se começaria a desfazer depois das dez. Hesitou* Exitou na eau-de-toillete, preteriu a Hugh Boss que lhe ofereceram lá na empresa, só pelo Boss obviamente estúpido, optou pela Chevalier D’Orsay que o distinguia dos aromas disseminados por qualquer centro comercial. Com a gravata decidiu-se de imediato pela de seda suíça, estampada em tons rosa velho e lilás foncé, com discretas inserções de miró; alguns achariam um pouco desadequado mas tinha criado um património de credibilidade que lhe permitia subtis desvios, diga-se de passagem, que eram prontamente objecto de tentativa de cópia do Araújo Collaço, sacana de advogado caneco. Por momentos, perdeu-se em pensamentos, à volta do Collaço, por quem nutria um ódio de estimação que vinha mantendo, deste os tempos de faculdade, nas velhas RIA’s. O sacana do MR-dum-caneco, como era conhecido, boa luta então lhe dava! Engraçado era como o bastardo, soubera fazer-se à vida, agora colado ao poder, sem muito se cmprometer. Viesse o governo que viesse, o “caneco” estava sempre na maior, e era isso exactamente que o tornava útil, quase imprescindível, lá na empresa. Despertou destes pensamentos e acabou de se arranjar: colocou os suspensórios, vestiu o casaco e deu uma ultima mirada ao espelho, aproveitando para ajeitar o cabelo.
Enquanto descia as escadas, pensou que deveria reforçar o programa no ginásio pois, ou muito se enganava ou estava a ficar menos tónico. Decidiu também que os sábados ficariam destinados ao ténis, o golf ficava reduzido aos domingos.
Chegado á sala de jantar, cumprimentou com um beijo na testa a mulher e jovialmente sem olhar para ela: -Bom dia Guta, dormiu bem?
Sentou-se e procedeu ao trivial pequeno almoço: Torrada com ligeiro doce + sumo de laranja + Jornal Económico. –Desculpa, disse ele levantando os olhos para a mulher quando se apercebeu que dizia qualquer coisa.
-Como quer fazer?
-Fazer, o quê, amor?
-Levamos os dois carros?
-Não querida, vou consigo no seu. O motorista leva o Volvo directamente para a assistência e nós podemos ir pela Marginal. Acha bem?
-Perfeito querido.

Saíram com o pequeno Audi 4 pelos portões de ferro forjado que se abriram automaticamente, ela sorriu ao leve apertar de joelho. Contornaram a o Forte da Cidadela, passaram pelo mercado, estação, Jumbo e só a partir daí o trânsito começou a fluir. Gustavo ligou o rádio,



Guta colocou os óculos de sol, reclinou ligeiramente o encosto, virou a cabeça para a janela recebendo o sol morno do meio da manhã.

No parque de estacionamento, declinou o amável convite para subir.
-Então o que vai fazer?
-Sinceramente… não sei, apetece-me fazer qualquer coisa de diferente.
-Não quer almoçar comigo?
-Obrigada querido, mas sei que os seus almoços são trabalho.
-De facto… Não tenho nada na agenda mas não me admirava se me encaixarem qualquer coisa à última da hora.
Trocaram de lugares, antes de fechar a porta, curvado Gustavo beijou-a suavemente nos lábios, apertou-lhe com o nó dos dedos a face, disse-lhe adeus sorrindo –Porte-se bem e dirigiu-se para os elevadores.

Guta subiu a rampa sentindo-se encadeada pela luz do dia.
Gustavo saiu no décimo primeiro piso, dirigiu-se para o seu gabinete respondendo aos cumprimentos, abriu a porta onde uma discreta chapa de cobre indicava:
Engº Gustavo Miranda de Azevedo
Director Geral

Foi até à secretária sem naquele dia reparar no verde de Monsanto nem no azul do Tejo.
Guta foi conduzindo pela cidade, desceu a Calçada de Campolide, passou pela Praça de Espanha, perdeu-se em pensamentos e viu-se na 2ª circular estranhamente perdida. Parou no parque de estacionamento exterior. Quando ali entrou, pela segunda vez, interrogou-se se estaria bem pois abominava Centros Comerciais. Eram quase 11:30.
*Hesitou - Emendado por Toix, fica aqui para minha vergonha.

sexta-feira, 23 de março de 2007

Cá o rapaz é assim II




… enquanto ajeitava o lenço no pescoço assobiando.

Passou pelo elevador com a porta rebentada mas compensado com as múltiplas grafitagens. Pensou lá para com ele – os chavalecos não podem ir longe, só pá veia é o que é – desceu os lances de escada evitando pisar o lixo acumulado que aumentava à medida que descia. Ao sair do prédio sacou dos persol, levou a mão ao bolso e verificou o dinheiro; apartou a nota de vinte que conquistara na véspera colocando-a no bolsito que o sinto protegia, e o resto – doze oiritos – enfiou-os no bolso de trás, que à peida ninguém lhe ia.

Atalhou direito à paragem e acelerou o passo para apanhar o autocarro; esticou a mão ainda de costas, e deu uma pequena corrida, a porta abriu-se olhou para o condutor e decidiu mandá-lo seguir com um desculpe. Foi até à pastelaria que ficava do outro lado, esperou calmamente pela atenção da empregada que esfregava o tampo de inox, quando ela se resolveu a um olhar de soslaio, empurrou com um dedo os óculos para a testa e sussurrou:
-Uma bica, baby.
A tal de baby, sacou por sua vez do sorriso monalisa, e perguntou-lhe, -Como? Ao que ele mirando-lhe o decote respondeu –Hum… cheiinha baby, cheiinha, e levou a mão ao bolso de trás. –Pag’á casa. Arqueou as sobrancelhas e a baby continuou, -É pela ajuda que deu com o desatino do outro dia. – Há, isso! São uns putos porreiros, não a chateiam mais, obrigado.
Pegou na bica e foi até uma mesa junto à janela para gozar o sol, pelo caminho arrebanhou os jornais do dia anterior; decidiu-se pelo Correio da Manhã para ver como paravam as modas, pois ouvira que tinha havido cegada no bairro ao lado. Beberricando e folheando acabou por desistir, não deu por qualquer notícia que se referisse à zona. Acendeu um cigarro e ignorou os movimentos da empregada que continuava a esfregadela na ponta do balcão mais próxima dele. Calculou o tempo decidindo que era melhor ir andando, ao sair levou mudo dois dedos em direcção a um possível chapéu e lá foi com o sentimento que tinha deixado um qualquer rasto atrás de si.

Não esperou muito na paragem, o autocarro parou sem ser preciso fazer sinal, cumprimentou o motorista ao entrar, passou pelo obliterador sem se deter e dirigiu-se para a porta de trás. Ao olhar que o condutor lhe deitou pelo espelho respondeu com um discreto acenar de mão que foi retribuído com um acenar de cabeça.


modelo do rapaz

em traje domingueiro

A viagem prosseguiu parando aqui e ali para troca de passageiros que se iam avolumando. Na avenida, em frente ao centro comercial o autocarro abrandou abrindo a porta pelo justo momento de ele saltar. Fê-lo com a elegância estudada, e assim foram às suas vidas.

A caminho do Centro Comercial foi programando a estratégia. Quase onze horas, ao passar pelo segurança decidiu começar por bater as professorinhas na livraria da Fnac. O sucesso era remoto mas o dia era longo e se alguma caísse sempre juntava o útil ao agradável.

in Astronomy Pictures


Vou falar-vos dum curioso personagem: Jeremias, o fora-da-lei
Descendente por linhas travessas do famigerado Zé do Telhado
Jeremias dedicou-se desde tenra idade ao fabrico da bomba caseira
Cuja eloquência sempre o deixou maravilhado
Para Jeremias nada se assemelha á magia da dinamite
A não ser talvez o rugir apaixonado das mais profundas entranhas da terra
Só quando as fachadas dos edificios públicos explodirem numa gargalhada
Será realmente pública a lei que as leis encerram
Há quem veja em Jeremias apenas mais uma vitima da sociedade
Muito embora ele tenha a esse respeito uma opinião bem particular
É que enquanto o criminoso tem uma certa tendência natural p'ra ser vitimado
Jeremias nunca encontrou razões p'ra se culpar
Porque nunca foi a ambição nem a vingança que o levou a desprezar a lei
E jamais lhe passou pela cabeça tentar alterar a constituição
Como um poeta ele desarranja o pesadelo p'ra lá dos limites legais
Foragido por amor ao que é belo e por vocação
Jeremias gosta do guarda roupa negro e dos mitos do fora-da-lei
Gosta do calor da aguardente e de se seguir remando contra a maré
Gosta da forma como os homens respeitáveis se engasgam quando falam dele
E da forma como as mulheres murmuram: o fora-da-lei
Gosta de tesouros e mapas sobretudo daqueles que o tempo mais mal tratou
Gosta de brincar com o destino e nem o próprio inferno o apavora
Não estando disposto a esperar que a humanidade venha alguma vez a ser melhor
Jeremias escolheu o seu lugar do lado de fora

sábado, 10 de março de 2007

Cá o rapaz é assim

Está pior que guardanapo de papel usado e amachucado.
Dói-lhe a cabeça da noitada e pelo que de si deu, para além do estabelecido e consensualmente convencionado.
Hesita mas acaba por se levantar. Atravessa o quarto vai até à kitchnet, aquece no microondas uma xícara do café que sobrara do dia anterior, liga a TV a que não presta a atenção, puxa dum Marlboro e senta-se à janela do quarto olhando nada.
O dia tá lindo, o sol sobeja caté met'inveja. Perdido em vagos pensamentos, dá por si a filosofar se um dia daqueles é ou não bom para a caça. Acaba por concluir que de caça não percebe nada. Deriva para a pesca e conclui que não, pois tem de ouvido, que a sombra na água espanta o peixe. Afinal actividades ao ar livre não são a sua especialidade; de captura de espécies não percebe patavina, tirando aquela a que amiúde se dedica nos centros comerciais, com técnicas apuradas em muitos anos de prática - tiro ao borracho. Para essa arte é preciso mais saber do que têm esses amadores domingueiros, de sequeiro ou de águas lusas.
As técnicas podem assemelhar-se: o engodo, a espera, o cerco ou o arrastar, mas para a sua arte há que dominar o canto e encanto à distância; é preciso o golpe de asa rasante, a abordagem subtil e o desconcertar para atacar com audácia temerária, mas acima de tudo há que ter calo e calma.
Quantas vezes não teve de enfrentar o insucesso? Aí, no infortúnio, é que se faz a diferença, se vê a classe do rapaz: retirada elegante e sorriso convincente impõe-se, pois fair-play não é só pá bola. Sobretudo nada de desatinos ou despeitados insultos entre dentes que cada peça que foge é uma lição a não esquecer e a juntar ao património acumulado para posterior tratamento de dados e correcção da acção.

Por fim esticou as pernas, entrelaçou as mãos atrás da nuca e estirou-se gozando um longo bocejo acompanhado de um som vagamente semelhante a loba com o cio. Levantou-se energicamente e dirigiu-se à pequena casa de banho. Passou água pela cara e pelo cabelo, escovou rapidamente os dentes e entregou-se por fim ao sagrado ritual de se barbear. Espalhou o foam pela cara, foi buscar a Wilkinson de três lâminas, mirou-a hesitando se as renovaria; decidiu que ainda não era altura de as trocar, esse prazer ficava adiado para posterior altura face ao agravamento do custo de vida. Colocou-se em frente ao espelho de pernas entreabertas em pose que adoptara do Saturday Night Fever. Em movimentos disco foi talhando e remirando-se ao espelho contornando lentamente o bigode e acertando as patilhas. Passou a máquina por água corrente e aspergiu a cara com água fria. Cheirou os sovacos e resolveu-se a levar mais longe a higiene, tendo o cuidado de não molhar a camisola interior. Dirigiu-se para a porta e antes de a fechar fez um exame rápido decidindo que deixara tudo em impecável ordem fechou a luz e a porta. Enfiou rapidamente as calças justas e pela cabeça a camisa que não chegara a desabotoar, enfiou a fralda dentro das calças, afivelou o largo cinto, calçou as botas que adorava: tacões em cunha., um pouco cambados, biqueira afiada e pespontos rematando a arte aplicada de sabor texano. Enfiou o colete que comprara baratíssimo a um marroquino armado em esperto, e que até a couro cheirava. Sacou de cima do cunhete de granadas que servia de mesa-de-cabeceira, o “Mont Blanc” genuíno que uma amiga lhe oferecera. Esticou o queixo e passou a boca do frasco directamente nas faces, estimulando a circulação com secas palmadas.
Decidiu que era altura de partir.
Fechou o apartamento a duas voltas de chave e lá foi pela galeria do sétimo piso: passada enérgica, arrastando ligeiramente os tacões, em direcção às escadas, enquanto ajeitava o lenço no pescoço assobiando.