Da Graça já vos falei há uns tempos atrás, uns ouviram ou melhor, leram, outros não tiveram oportunidade mas ficam a saber que a sua porta fica ao canto mesmo ao lado da da Maria. Serão os que destoam nesta ilha, mais pela idade que os separa do resto, do que por qualquer outra razão. Para ali foram acabados de casar embora já não fossem estranhos quando chegaram, porque a montar casa andaram um ano a escorregar para os dois. Para além disso a menina Graça já era conhecida do cartório onde trabalhou até há algum tempo atrás. Porque não trabalha lá, agora? Explico: Corria tudo bem até ao dia em que o Dr. Sobral a chamou-a ao gabinete para lhe dizer –Graça, a partir de amanhã vem um estagiário; quero que o vá pondo a par do serviço, vá ensinando os procedimentos comece pelos assentos. Ah, o arquivo, o arquivo também. Assim foi. No dia seguinte lá estava aquele lingrinhas, logo pela manhã fria de Janeiro, sentado na escada, ou melhor no lenço porque o lenço é que estava na escada, mirando-a apalermado, enterrado no boné, desajeitado. Desajeitado era pouco; ao aperceber-se que ia abrir da porta, pôs-se á sua volta em passinhos laterais, fazendo sons de macaco e a retorcer o boné! –Entre, é o estagiário, não é? Pois o tanso, que outro nome não merece, palavra d’honra faz-me uma cena! Entra não entra, com encontrão pelo meio…-pró que estás tu calhada Graça Maria, pensou ela; e pensou bem digo eu.
Pacientemente lá foi mostrando os cantos e os livros da casa até chegar o Dr. Sobral que a primeira coisa que fez foi metê-lo no gabinete para uma conversa; para lá estavam eles, toca o telefone: –É da diocese da parte do Sr. Bispo, para o Sr. Dr. Sobral. Graça viu tudo, ou quase tudo.
Os primeiros meses nem correram mal. O rapaz de desajeitado foi-se tornando desembaraçado, sem dificuldades para aprender; tinha até de admitir que em arrumo e método podia pedir meças a ela própria; não se esquivava a nada nem ao pó do arquivo. Correram bem… com ele corriam porque com o Dr. Sobral iam piorando, especialmente após os telefonemas do Bispo.
Começaram a correr mesmo mal no dia em que o Dr. Sobral ao examinar uma escritura lhe pôs a mão na cintura e a começou a afagá-la paternalmente. Era o dia das mentiras, o tempo convidava a saia travada de tecido cinza e a camisolinha de malha. Sentia-se tão bem! até aquele estupor se atrever. Quando e como pôde refugiou-se no arquivo onde poderia verter as suas lágrimas, secas de raiva. –Que se passa, menina Graça? nem ali! A um passo inquiria aquele estupor direito seguro e doce. –Que se passa Graça? Ficaram a olhar um para o outro. Olhou-o nos olhos e viu-os límpidos sem qualquer mácula. –Não é nada, deixa lá; quis passar por ele mas viu o caminho barrado. –Sei tudo o que se passa, é por minha causa, disse ele antes de lhe virar as costas direito ao gabinete; um: –Pára, rouco, ríspido, semigritado estacou-o. –Depois conversamos melhor.
O arquivo passou a ser local das conversas. Na primeira foi feito o ponto da situação, avaliada a conjuntura: Bispo e Sobral estavam de acordo no que dizia respeito a quem melhor servia no cartório; nas que se seguiram não mais se entenderam. –Pões-te fora e vou eu a seguir. –Prá guerra, não? dizia ela; dois meses nisto, o tempo a aquecer era a conversa ao almoço partilhado no arquivo que nada mais tinha para pôr em ordem.
Entre teimoso e teimosa como se sai desta? Eu desunho-me dizia ele. – Parvo, retorquia ela; desesperado e sem argumentos agarrou-a pelos ombros , puxou-a para si sem sentir grande resistência, sentiu-a sim aninhar-se no seu peito. Pegou-lhe no queixo, a resistência foi afrouxando, beijou-a ao de leve nos lábios.
Nesta vida nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.
Perdia o emprego, ganhava o futuro marido