terça-feira, 9 de junho de 2009

Deolindo

Esta é a história quase verdadeira de Deolindo Casanova, mulato de pé calçado, que fingia achar-se o mais lindo quando se olhava no espelho.

Esticava o cabelo ligeiramente descolorado com a escova ajudando com a palma da mão levemente embebida com Brylcream , coisa que o ocupava por uns dez minutos bem medidos. Sem deixar de fixar o espelho limpava as mãos na toalha pendurada na cadeira, dobrava-a impecavelmente, voltava a pô-la no sítio. Ajeitava a camisa de chita estampada cuidadosamente enfiada dentro da calça branca Lafinesse, enfiava no bolso direito o indispensável lenço branco que ele cuidadosamente esticava onde se sentasse, muito útil ainda também para equilibrar o enchumaço que sobressaía do lado esquerdo, por fim aspergia generosamente Old Spice nas mãos, passava-as pelas faces acabando por as fustigar energicamente, exactamente como vira Belmondo fazer naquele filme. Este era o seu ritual sagrado antes de sair de casa pelas onze, mesmo a tempo de assistir à saída do liceu.

A sua chegada era alegremente festejada de longe quando ele assomava no seu passo gingão, pernas ligeiramente cambadas à cavaleiro.

-Conta lá uma.
-Não me xates Kata. Kata era o nome desvirtuado do seu mais fiel admirador.
-Toma lá um cicarro.
-Hê pá, ainda agora fumei um… mas tá bem, aceito. Batia com o cigarrona unha do polegar, tivesse filtro ou não, alinhava o cigarro costas da mão voltada para cima, com os dedos unidos, dava uma palmada no antebraço para acontecer magia: o cigarro volteava no ar para poisar nos seus lábios.
Passada meia hora de cavaqueira dizia invariavelmente –Tá na hora. Estava na hora de rumarem ao portão de saída das miúdas. Lá iam para contornarem os enormes muros, como se diz hoje, interagindo com quem se cruzavam.
-Porra, olh’ás calças! Disse voltando-se como uma mola, punho em riste.
Lívido Kata balbuciou um – desculpa - para ouvir um – desculpa o caralho. A rasteira afinal não tivera piada.

Deolindo não era um brigão mas com as calças e o cabelo não brincava, que o diga Renato Caruso assim baptizado por Deolindo pelo furor que os seus trinados faziam nas matinés de Domingo. De certa forma eram as faces opostas e inversas da mesma moeda. Para resumir: Caruso era um híbrido na percentagem 10 de Elvis 88 de Carazonni e 2 de Renato. A animosidade entre eles era disfarçada pelos mimos trocados até que um dia, à saída de uma aula de Alemão, Renato se meteu numa brincadeira não tendo melhor ideia do que desfazer o penteado de Deolindo resultando num simples “espero por ti lá fora” com empate final a dois: um olho negro e um lábio rebentado a favor de Caruso para dois dentes a favor de Casanova que teve o direito de saída em ombros. Favoritismos da assistência nada mais.

Bom, mas eles iam a caminho do portão das miúdas, né? Pois’é! As miúdas cedo começaram a sair sendo, as primeiras, distinguidas com palavras que iam da bifana ao marisco. O mulato reservava para as mais bonitas: És feia que nem um bode, ou Credo! Tiveste um acidente? Para a irmã mais nova das Metralhas que eu, por piedade cristã, me recuso a descrever, dedicava, mão no peito e de olhos aos céus, a canção “O que é que você vai fazer Domingo à Tarde”. Isto era Deolindo à saída do Liceu até avistar Docelinda. Estão já a imaginar uma BOAZONA, né? Ná. Docelinda só era, simplesmente doce e linda! Boa colega, aplicada, não se eximia de se pôr de lado para o que o detrás copiasse os testes que, invariavelmente, acabava primeiro que todos.

-Já acabaste? Podes entregar.
-Não sôtor. Tenho que completar uma pergunta, obrigada, melava. E o teste passava ora para a esquerda ora para a direita da carteira. A malta à volta parecia que ganhava pescoços de avestruz. Não obstando à sua irrepreensível compostura, Deolinda, alinhava nas pelintrices da turma, está bem de ver que tais predicados agravados por uma elegância extrema e um rosto permanentemente radiante, causavam mais estragos que gripe suína. A epidemia tomava conta da turma alastrando até para fora do liceu. Os mais afoitos metiam à carga, ela, com a mestria de toureiro limitava-se a discretamente distribuir chicuelinas e passes de peito. Olé.
Quem não carregava adoptando antes a táctica do quadrado qual cavaleiro da ala dos namorados, era Deolindo.

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
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Os poetas podem saber muito, mas quem de facto tinha razão era o beato promovido recentemente a santo. Naquele dia, estes olhinhos que a terra hão-de comer, viram o que a Alzeimer ainda não apagou: Docelinda passou por nós, Deolindo atirou a beata para o chão esborrachou-a com a biqueira do sapato e disse: Tchau malta. Vimo-lo ao passar por Docelinda abraçá-la pelo ombro, Docelinda abraçar-lhe a cintura e lá foram eles. Nós para ali ficámos… de boca aberta.

Troco um dia de poesia por uma vida de ilusão.

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Silêncio e tanta gente - Maria Guinot

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Silêncio e tanta gente

Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro o amor em teu olhar
É uma pedra, é um grito
Que nasce em qualquer lugar

Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal aquilo que sou
Sou um grito ou sou uma pedra
De um lugar onde não estou

Às vezes sou o tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar
Às vezes sou também um sim alegre ou um triste não
E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão

Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro as palavras por dizer
É uma pedra ou é um grito
De um amor por acontecer

Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal p'ra onde vou
E esta pedra, e este grito
São a história daquilo que eu sou

Às vezes sou o tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar
Às vezes sou também um sim alegre ou um triste não

E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão

Às vezes sou o tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar
Às vezes sou também um sim alegre ou um triste não

E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão

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