segunda-feira, 4 de junho de 2007

Felizmente cresci numa época de abundância e optimismo.

Vivi olhando com alguma sobranceria a minha avó que dava cabo das lâmpadas num estranho ritual de apagar e acender luzes, comprometedor da esperança de vida dos filamentos, e entre sermões de necessidade de poupança. Herdei sem saber os tiques de guardar lixo que atafulham gavetas e dispensas com vista a uma necessidade futura, inevitavelmente relegado para o esquecimento não servindo absolutamente para nada.



Paula rego Untitled-10


Era enervante aturar as suas manias mas eu lá condescendia, julgo que de forma inconsciente, a troco do carinho que recebia.Os cortes para calças ou camisas eram comprados após avaliações de alturas ou larguras sempre tendo em conta uma folgada bainha dado vaticinar que eu ainda iria dar um pulo. Virava colarinhos e punhos, botavam-se solas e meias solas com protectores metálicos, tão do meu agrado pelo partido que tirava deles, mais não fosse, em sapateados balançados segundo a inspiração da última “cóboiada” ou episódio do Bonanza.
Na cozinha as metamorfoses sucediam-se em deliciosas propostas que podiam evoluir de cozido à portuguesa em empadão ou de carne estufada em croquetes tal como os restos de uma pescada cozida com todos se finava em deliciosa tortilha. A “roupa velha” não conta porque resultava de uma acção premeditada em vésperas de Natal.
Se uma torneira pingava havia algum recipiente que se encarregava de recolher durante o dia ou noite para posterior utilização em lavagens ou mesmo cozinhados.
Ah! as braseiras. Para quem seja familiar, eram dois ou três objectos que cirandavam pelos quartos da casa, incluindo o quarto de banho. Uma dela era a rica, de cobre, as outras, as de folha-de-flandres, não me lembro de lhes ter sido dito nada, mas seriam as pobres, coitadas! Por engenho da "velha" e o muito moer o ferreiro, sofreram um up-grade: uma grelha em ferro forjado, pensarão vocês que por questões de segurança, talvez; mas o certo é que levavam em cima com um jarro de esmalte que se não vertesse as águas numa espécie de bidé, para algum banho checo ou lavar de pé, acabava entre lençois numas botijas de barro ou em ultimo caso no alguidar de lavar a louça.
Tostão era tostão, lençol velho não morria como tal. O carvão do fogareiro, assadas as sardinhas, era salvo por uma baldada e ficava a secar esperando um carapau.
Com ela tudo produzia e se possível mais do que uma vez e uma coisa. No quintal, o que produzia sombra também produzia figos, as galinhas ou produziam ovos ou antecipavam a produção de carne e as desgraçadas das coelhas como nunca se habituaram a pôr ovos punham coelhinhos ou eram rapidamente associados à vinha-d’alhos.
Com a genica que tinha e capacidade de polivalência se me tenho lembrado de a inscrever na independente, não sei, com a crise que para aqui vai… Ambiente, Economia?




Paula Rego Assumption

5 comentários:

Maria Arvore disse...

As razões dela seriam esticar o orçamento familiar numa época em que em Portugal a maioria vivia com dificuldades económicas. Mas nestes tempos de governantes formados pela Independente julgo que rapidamente a maioria dos portugueses vai retomar as mesmas medidas ecológicas e económicas da tua avó. ;)))

Ah e não perdeste o jeito de emocionar pela tua escrita visual sobre outros tempos. :)

DF disse...

Fizeste-me lembrar uma outra história que me apetece contar um dia destes... E eu, se não tivesse guardado essa tb herdada "psicose", hoje em dia já estava a caminho de ir viver debaixo de uma ponte qq... Os "outros tempos" não são outra vez "estes tempos"?!:)

Joana disse...

Economia, definitivamente. O país precisa de economistas criativos. E se sabia gerir bem a casa, fazia um brilharete nos cofres públicos... ;)

Jinhos.

P.S. Ilustrações magníficas, escrita a condizer.

Erecteu disse...

Maria,
Esta é a avó de todos, procurei pôr isso nela.
Não é um retrato da minha embora me tivesse servido da 1ª pessoa.
Alegra-me saber que as imagens que passo para o teclado possam ser visualizadas, às vezes acontece.

Beijões

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Di,
Foi esse o meu ponto de partida.
Os tempos sobrepõe-se.

Bjs.
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JJ,
As avós sabiam gerir as casas, as de hoje também.
Como atrás disse esta avó é supra pessoal.
A palavra e as imagens: felizes coincidências, somente. Dá-me ideia que elas é que me encontram.
Bjs

Elipse disse...

Comungo contigo este gosto pela pintora. Que é fabulosa!

Mas também comungo as lembranças do POUPAR e o que delas ficou, certamente (mas em doses seguramente menores) transmitido aos meus filhos, a tentar que eles não se deixem levar pelo excesso de solicitação que a actualidade lhes sugere a toda a hora.

O texto?
Sempre deslumbrante na irreverência.