quinta-feira, 12 de abril de 2007

Cá o rapaz é assim VI




De olho no plasma e no hall, lá estava ele ainda não era uma, o olhar periférico confirmava que se estava em dia não. Ou o gagêdo perdera o medo à chuva, ou já gastara o ordenado. Ainda não batia a uma e já se anunciavam as notícias: Bomba aqui, bomba acolá e por cá também, cum canudo! Começaram a juntar-se pessoas à volta do ecrã, os comentários cruzavam-se, entre tipos que jamais se falariam; as emoções afloravam, era altura de bazar, queria lá saber se o gajo tinha ou não tinha canudo, ala que se faz tarde.
Pouco esperou para as ver aparecer. Guta desculpou-se pelo ligeiro atraso, Dina rindo-se:
-Não é nada a que não estejas habituado, não é?
Olhou-as, acabando por rir com vontade, ao ler a piscadela de olho, em jeito de autocrítica.
Ao onde vamos de Guta, Dina de pronto sugeriu o Madeirense, bem acolhido pela anfitriã.
-Gosta de espetada?
-Se gosta! Disse Dina, em nova risada.
-Gosto, disse ele, mais do que divertido, agradado com a boa disposição da amiga. Voltava a ser a velha Dina, maliciosa e provocadora.
Dina enfiou-lhe o braço e arrastou-o em direcção às escadas, ele resistindo, apontou-lhe o caminho certo, na direcção contrária: -É lá em cima. – Não é não, teimou ela.
Deixando-se arrastar, meio confuso, lá foi ele no meio das duas em direcção ao parque, até que o esclareceram que o Madeirense era outro.

Apalpou os estofos de coiro mirando o espelho retrovisor onde se reflectiam uns olhos agradáveis, emoldurados por um cabelo despretensiosamente arranjado. Deixou-se embalar no movimento do carro e nos doces cheiros que o envolviam: o perfume dela, discreto, assomava ao de carro novo. O tagarelar delas era uma trilha sonora perfeita para o desenrolar da paisagem que fugia e se ia transformando de candeeiros em arvores e por fim em Tejo com a outra margem por fundo, até se deterem junto a um restaurante que prolongava até ao passeio um esmerado toldo.
Sentiu-se desolado pelo término da viagem, como se despertasse de um sonho agradável.
O porteiro abriu-lhes a porta, cumprimetou cerimoniosamente Guta, observou Dina e lançou-lhe um olhar reservado e de suspeição. d'aqui

Até chegarem à mesa, de mão em mão, passaram por mais dois empregados. Guta recusou a mesa que lhe sugeriram e escolheu uma ao pé da janela. Ia a sentar-se mas foi sustido pela mão de Dina, o empregado ajeitava a cadeira a Guta, e ele, por sua vez, resolveu fazer de criado, ajudando Dina a sentar-se; ficou na dúvida se era isso que deveria ter feito, sentando-se por sua vez.
Ao aproximar-se outro empregado com os cardápios encadernados em couro bordeau, Guta atalhou encomendando três espetadas, acompanhadas de legumes. Ao rapaz coube iniciar um incontido calculo mental tendente a apurar se umas batatitas estariam ou não incluídas na tal categoria de legumes.
Assim começava uma guerra que travou estoicamente, em duras batalhas: a dos copos e a dos talheres à qual se juntaram pequenas escaramuças como a do guardanapo. A tudo respondeu à altura graças à estratégia adoptada, e de acordo com os ensinamentos da velha que tanto o chateou em miúdo: “Nota bem, antes de tocares no que quer que seja espera que eu o faça e depois faz como eu.” Ainda parecia que a estava a ver mas o que é certo é que deu resultado, um resultadão! d'aqui

Não estava preparado era para a escolha do vinho, mas porra, pensou ele, Quinta da Bacalhoa, 60 €!, não há-de ser mau e deve embebedar com certeza. Venha ele, que a gaja não deve ter comprado o Audi a prestações.
Olhou para ela a ver se lhe tinha dado o treco, mas recebeu um sorriso com o: -Não poderia ter escolhido melhor.

Soubesse eu disto e na verdade tinha posto o rapaz a escolher um de 120, mas andemos que não tarda, faz-se tarde, e cá pra mim isto já começa a chatear. Pessoal quem quiser salte aqui mas eu tenho que continuar.

Engoliu em seco e pensou nos nove euros que tinha no bolso porque aos vinte bem dobradinhos não queria fazer contas. Provou o vinho e acenou com a cabeça. O que ele queria dizer nem eu sei mas temo que não fosse nada abonatório ao princípio da relação qualidade-preço.
Começaram então a servir uns pratinhos entre os quais estavam uns rissóis que não passavam em qualquer outro lado. Lá bons eram eles mas com um tamanhinho daqueles nem ao diabo dum forreta passaria pela cabeça fazê-los. Lá no bairro seria motivo para protestos ainda que a um terço da tabela os tentassem impingir.
Lá foi morfando o que lhe parecia a si caber, acabando por se estender ao que em consciência não lhe competia, colhendo proveito do cuidado que Guta tinha com as anquinhas e da manifesta falta de apetite da Dina.
d'aqui
Já havia varrido o que se apresentara na mesa, à excepção claro, de umas iguarias que a vergonha e o instinto de decência aconselham, quando chegaram, com pompa e circunstancia, os três estranhos cabides de ferro, donde pendiam nacos de carne à mistura com pimentos e cebola, escorrentes em apoteótica alegria de um molho que largava um cheirinho, capaz de fazer um homem esquecer-se de uma gaja boa.
Serviu-se com a delicadeza que a circunstancia pedia, levou o primeiro pedaço à boca, semicerrou os olhos deliciado em êxtase... quando se apercebeu que Guta o interpelava.
-Está a gostar?
-Porra, saiu-lhe, d’isto? Mas isto, isto... é uma prova da existência de Deus!

* há diefe, como promessa a cumprir.

13 comentários:

Maria Arvore disse...

Afinal, a carne é que prova a existência de Deus. :) Será então a nossa alma o molho que lhe pomos?... ;)

Abssinto disse...

Ah, os Bon Vivant, como os aplaudo!

Abraço

Sandokan disse...

Na prática, sempre que nos encontremos em situações de difícil saída e não esteja em jogo o respeito que sentimos por nós próprios, ser-nos-á útil oferecer ao nosso interlocutor um compromisso viável.
Toca de comer!

http://lusoprosecontras.blogspot.com

DF disse...

Cumprida será, só que num muito SUPERIOR local, sem pompas nem circunstâncias, num "Madeirense" muito mais verdadeiro que este aqui, (que mete esta espetada-a-martelo e com-ar-keke:):))
Gostei de estar a "entrar indirectamente" na narrativa...:)

GK disse...

LOL Parece-me que sim...

Erecteu disse...

Maria-baum,
A carne é a essência e a alma a consciência do prazer ;)

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Ab,
Todos os bons são de aplaudir.
Um abraço

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San,
Toca a comer o que for viável.

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Di,
Assim será se ocasião houver.
A participação indirecta foi como a espetada, a martelo :)
Bjs.

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GK,
No provar está o ganho?

Espaços abertos.. disse...

Sempre que for viável há que aproveitar.

Bom fim de semana

Bjs Zita

Fresquinha disse...

Pois ..um Mac Donald tinha sido um adequado investimento ! :-)))

Maria disse...

Sim, senhor...

...mas e os putos? E a equipa de futebol? Tenho saudades :(



bom weekend

Lara disse...

Nada como viver com estilo.

Já pensaste escrever um livro de pequenos contos? :)

kiss

psique disse...

mais um conto espectaculo...concordo com a B.

Erecteu disse...

Entre linhas,
Aproveitemos então.
Bjs


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Fresquinha,
Cortaram-lhe as voltas :)

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Bolachinha,
Devem andar por aí às pinhas ou aos pardais.

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B. , Psique
Obrigado amigas.
Nunca pensei sequer em escrever nem me dá ponta mais do que isso.
Reescrever, rever... tirava-me o prazer de escrever :)

Nanny disse...

Beijinho ao rapaz, que mais não me é permitido... deliciosa a espetada, o vinho, a Guta, a Dina...

Vou-me... voltarei quando o computador e a net fizerem as pazes comigo