segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Missiva

Compadre,
Lá dentro, sem que necessário fosse dar-te consentimento, acrescentarás ou retirarás o que te aprouver, e com certeza a tua arte encontrará os melhores planos e luz para fixar o momento; entretanto o capricho, liberdade do narrador ou eventual e episódica reminiscência do passado, porão o puto a ver as coisas assim:

Uma sala que nunca poderia ser generosa dada a quantidade de mobília que a recheia. Um aparador com cristaleira uma mesa de um inútil abrir, quatro cadeiras encafuadas, e adossados às paredes um divã à direita e uma cama à esquerda. Resta uma área exígua que dá para percorrer de lado o espaço entre um quarto na mesma atafulhado por uma mobilia completa reforçada pela companhia de uma Nechi, onde Augusta se farta de pedalar e a uma divisão que não destoa do resto na estreiteza que tem para cozinhar e comer.
Mais nada? Mais nada que é como quem diz, se levantares aquele tampo de madeira, à cabeceira da mesa, descobre-se uma pia para todo o serviço.

Lá dentro só isto, aproveitemos para espreitar a casinha aqui em frente, entra e não estranhes a confusão que há de tudo um pouco e pouco utilizado, excepção feita às três peças de minha devoção e que qualquer dia poderão muito bem aparecer à venda em qualquer casa da Calçada com o letreiro “Antiques”à porta: o ferro de engomar, o pulverizador de cobre, o petromax e, ah! Afinal são quatro, o grande alguidar de zinco parcimoniosamente utilizado porque banhos a mais não dão saúde a ninguém, como toda a gente ali bem sabe.

Aproveita para ver o pátio. Esta correnteza de casas tão iguais, não nos deixemos iludir pela diferença das aparências, são de famílias quase iguais à de Augusta Maria. Têm todas cá fora o estendal da roupa, a casinha com as mesmas coisas, mais coisa menos coisa, e ao longo do muro capoeiras, coelheiras, as leiras com pouco mais do que couves galegas que terão as folhas arrancadas uma a uma e morrerão cozidas no prato em companhia de uma batatita, regadas a fio de azeite. Aqueles gaiatos que brincam sentados no peal não são mas é como se fossem irmãos, bulham e amam-se exactamente da mesma maneira, pelo menos por enquanto.

Mais o quê? Ah! Os animais. Aqui é que há as diferenças: aqueles são pelos canários e piriquitos, os a seguir pelo gato e lá ao fundo pelo cão, mais canito que outra coisa; sim esse mesmo que passa a vida correndo atrás do próprio rabo.
Pronto, há ainda outras diferenças que os separam, as devoções. As santinhas delas e os clubes deles.
E política? Oh Rui! … era melhor não nos metermos por aí, evitemos tá?

Vá, vamos embora. Por agora fechemos a porta que ainda é cedo e as almas que a habitam o 23 ainda não vieram da labuta.

Um abraço do teu compadre amigo
Erecteu


2 comentários:

rui disse...

Olá Compadre

Sim… fixei o momento!
É um inesquecível relato sobre o interior e os recantos, que estão para além da porta 23, a tal que tem um postigo. Manténs o pulsar até a última palavra.
Tá bem compadri, hoje nã se fala de politica.

Mais uma pérola da tua seara.
Grande abraço, Amigo

Maria Arvore disse...

Que carta tão visual! :)

E o que eu gostei do rigor dado às couves que "morrerão cozidas no prato". :)

(e dizes-me o que é uma Nech?... É uma máquina de costura?...)