domingo, 24 de maio de 2009

Que las ay ay

Uma longa vida de trabalho numa ainda não muita longa vida passara a voar em rumos incertos como perdiz espantada por botas cardadas - era o pensamento que mais uma vez assomava, enquanto limpava o tampo de mármore corroído, como se fosse possível alguma vez remover as manchas tintas de que nem a lixívia dava conta.
Pôs o pano ao ombro, afagou a pedra com ambas as mãos enquanto mirava Sofia, a filha, que arrastava as cadeiras de um lado para o outro passando a esfregona esfarrapada pelas velhas tijoleiras numa cadência lenta como tempo vazio.
Como cresceu a minha menina! Embevecido reparava em como se tornara numa mulher roliça. Encantava-o aquele rosto ainda de menina: sardas sobre as faces permanentemente coradas sublinhando o olhar meio malandro, o cabelo de fogo em caracóis rebeldes atestavam a linhagem galega que, dizia-se, teria um antepassado da mulher para ali trazido.

-Isto tem de dar uma volta, pai. A loja tem de render, disse a gaiata recebendo em troca a expressão agastada e mais uma vez se pôs a passar o pano pela pedra do balcão.
-Ouviste?

Sorriu e pensou: Sai mesmo à mãe, para logo se perder em pensamentos que o levaram a chapadas acima que, ainda o primeiro dente não lhe tinha caído, calcorreava com um rebanho que era tudo, tirando os da casa, pais e irmão, quem ele conhecia. Conhecia as ovelhas uma a uma ainda que poucas tivessem nome. Andara nessa vida de pastor até o cajado esfiapar o capote junto ao peito, as sortes lhe ditarem o caminho de África e, por acaso, tropeçar, em dia de feira com a Júlia galega. Desse dia ao salto da fronteira que o levou até terras de França não passaram mais de duas luas e outras, poucas mais depois, já a galega fora ter com ele a um banlieue de Paris onde foi sendo promovido nas artes de maçon até tomar a seu cargo algumas obras que promotores principalmente espanhóis, mas tambem alguns lusos, destinavam ao aluguer dos que iam chegando, a salto claro. Júlia, essa graduou-se em maitresse de ménage até Sofia nascer. Passados três anos cortaram-lhe um peito e onze depois regressou com ela para a enterrar na aldeia em que afinal nem nascera. Como passara o tempo!

-Não me ligas, acorda. O que vai ser da venda quando eu me for embora?

O coração parou-se-lhe por momentos. A sua menina passado aquele verão ir-se-ia embora, iria para a faculdade, como era possível? Os sentimentos emaranhavam-se; o orgulho lutava com outro que não era capaz de definir… a ideia de que ela, quando já doutora, não voltaria para aquela casa atormentava-o.

-Anda vai fazer uns petiscos, olha que hoje é sábado.
-Poucos os pedem… sabes bem.
-Vá lá, mexe-te, os lisboetas agora andam por aí, o Alqueva sempre há-de servir para alguma coisa, né? Olha, vou fazer um cartaz para prantar na porta, vais ver.

Em menos de um ai ou de um ui o cartaz já lá tava, regalou-se com a letra certa e redondinha que a sua menina tinha.

d'aqui


Dedicado a Maria de Lourdes Rodrigues, insigne reformadora que tão belas e difíceis provas nos tem dado, para alegria dos nosso queridos filhos.


.

O Fortuna - Carl Orff
.

1 comentário:

Bartolomeu disse...

Segundo os padrões estabelecidos, as regras gramaticais estão incorrectas mas, não sabemos se a moça vai para artes. O desenho da caraculêta até que não está nada mal, apesar de, o olhar "gaiato" do bicho ser suficiente para desmotivar o "consumo" da espécie...