segunda-feira, 28 de junho de 2010

A Jesuíta

Tinha começado, que eu me lembre, as primeiras incursões no domínio do sexo, calma aí, que se limitavam a pouco mais do que enrolar um pirolau no indicadorzito, quando me encantei por ele, pelo simples fascínio de o ver assobiar; seguia-o com os olhos no seu deambular p’la oficina, dentro de um fato-macaco pouco ortodoxo face ao tom de azul a descambar para o celeste. Noite dentro insuflava a s bochechas e vai de soprar, soprar sem parar, em aflitivo fluxo eólico mudo. Falhanços há muitos mais do que chapéus, marés e marinheiros, né?!!! Pois bem, fiquem sabendo que hoje assobio se bem que não dê para fazer parar um táxi, ou encrespar ombros de moçoila.

Mas saltando de fascínio em fascínio, não posso deixar de referir o que representou para mim aquela popa armada a bylcream sublinhada pelos acordes assobiados do Let´s twist again, isto para não referir o fascínio da camisa, cinza-claro, TV que era só lavar-secar-vestir, passe a publicidade serôdia, tão bem encaixada no “blaiser” marinheiro, herdado do morgado, em trespasse assertoado por botões dourados com a inevitável ancora negra reassaltando no meio e emblema, com escudo e dragões, pespegado no bolso.
Pequenino como nome e apelido- Zé Coelho, grato e eterno devedor ficarei pelo patrocínio de que fui alvo quando me franqueava as portas do cinema em filmes para maiores de dezoito, ou em sábados estivais me subtraía ao dever de pagar vincincotostões para aceder ao salão de baile do Associação Cultural, Desportiva e Recreativa Sebastião José de Carvalho e Mello, Conde de Oeiras, instituição pouco conhecida, ainda que bastas vezes agraciada com medalhas palmas e louros, mas vitima de quem a baptizou com tanta dignidade e maior extensão que nem a sigla ACDRSJCMCO valia para a libertar de tão injusto anonimato nacional, e que, talvez por isso, era para todos “A Jesuíta”, só. Não se sabia porquê, mas hoje, desconfio de que se tivesse ficado a dever ao mestre escola, personagem de mistério, ainda que de tola e conta bancária a descoberto, se intitulava de sorriso mordaz quando se apresentava com garbo ou galanteria: “ João Silveira, um déspota iluminado, pouco esclarecido, um servo ao seu dispor”. Adianto-vos que poucos não lhe passaram pelas mãos do a ao u, da dos dois à dos nove, percorrendo linhas e ramais por pontes atravessando ora rios ora afluentes, num movimento perpétuo de dinastias, coexistindo com problemas de tanques a vazar, torneiras a pingar, em dias solarengos outros nublados consoante a bipolaridade do mestre ditasse.

Ah que bailes a dois conjuntos para distintos gostos! Clave de Sol, dava cabo de centos de meias solas com os seus tangos, valsas, marchas e uns quantos saltos de agulha lixou à menina Rita, especialmente, quando se finavam os passo-doble. Para a malta ou maralha, consoante a filiação na JOC ou na JEC, os Linces Ibéricos, indefectíveis seguidores dos Shadows. muito para a frentex na estética musical, tinham que se ater aos yé-yés francófonos de que os Les Chats Sauvage faziam largo consenso, fazendo, á revelia do gosto dominante, tímidas incursões ao novel Love Me Do ainda antes de Ringo reinar na bateria dos guys de Liverpool, mas já com as franjas debruçando-se sobre os sobrolhos e outros cabelos atropelando timidamente as orelhas, para desgosto de muito macho-pai que via voltar a casa, das escolas internas ou, raramente, da universidade, filhos comprometendo respeitáveis nomes de família.

Mas se era de Zé Coelho que dissertava porque é que me perco nos bemóis? Ah! os baile da colectividade. Gandas bailes, sim senhor! Não é que eu dançasse pois a coragem, que nem tintins, caía-me aos pés sem me permitir afoitar no clássico: -A menina dança? Ao invés abraçava-me ao pirolito, ainda não me serviam bjekas, remoendo pragas entre arrotos, pois bem mal me dou com ácidos e açucares. A inveja torcia-me o estômago, bloqueava-me o esófago a cada rupiadela de Zé Coelho subitamente estancada com a biqueira do sapato apontando, seguramente, o centro geodésico para, em seguida, num rompante, sair indiferentemente pela direita ou pela esquerda, despoletando frequentes interjeições vocais e aplausos até, amarfanhando entre os lábios e os dentes de muitos o tão natural e humano sentimento de despeito puro, purinho. Este pequeno Coelho com alma de lebre desmultiplicava-se no clube de porteiro a animador, aliás como compete a um competente dirigente, por agora tesoureiro, mas predestinado a ter, no salão nobre, o seu retrato perfilado entre outros que remontam a tempos da monarquia, como muito bem ilustram os bigodes retorcidos.

Mas se pela memória e inveja puxo, não posso deixar de vos confidenciar a imagem que dele preservo fardado, já de caqui, aquando da sua licença; bivaque ao ombro, cigarro de filtro à banda, olhos semicerrados em perpétuo sorriso, relatava os exercícios preparatórios do Juramento de Bandeira, ou peripécias da marcha final, que tão vivos tornavam os valados cheios de água pestilenta, pórticos de fazer tremer as pernas ao mais valente ou a aspereza do solo mordendo os peitos imberbes dos rastejantes camaradas mancebos que, em menos de uma semana, estariam devidamente acondicionados num convés de um Pátria, Império ou Uíge, pouco importa, rumo a terras de Leões, de catanas e canhangulos, escondendo o medo-menino atrás de ferozes, ai Jesus, dentes arreganhados e gritos de Angola é nossa perdendo-se no cais da Rocha de Conde de Óbidos, enevoado por lágrimas aquém e alem amurada. Foi assim que partiu, disseram-me porque, eu confesso, não tava lá...

a canina é d'aqui


...tava, como hoje na Jesuíta; deste canto miro Zé Coelho avançando rumo à taqueira desabotoando os punhos, primeiro para depois folgar a gravata regulamentar e finalmente o colarinho livrando o gasganete de apertos. De posse de um taco displicentemente recolhido, como que ao acaso, antes de começar a jogar, ou perante jogada mais complexa, brandia-o como florete, qual Errol Flynn dominando no castelo da popa do Gavião dos Mares.
A tropa levara-lhe os cabelos até à raiz, mas a dignidade ficara intacta pois a nobreza de carácter em corpo plebeu é perene... Coube a abertura ao amigo ainda que adversário, Joaquim, da Pinta por parte da mãe, Maria Pinto, maldosamente cognominada, pelo sacristão Lopes, ajudante de escrivão de profissão, Legionário-bufo de vocação, de Maria Pito. Pois, o Pintarolas moço escorreito e trabalhadeiro, recém regressado das sortes de Coelho, até não seria mau partido não fora ser filho de pai incógnito e de mãe boa para toda a obras; e se o Pintas partira mudo voltara calado o que, após dúzia e meia de caramboladas, falhando por pouco, cedeu o lugar ao Zé com: -Desenmerda-te Zé que te sequei. Afinal os turras não lhe tinham cortado a língua, como já para aí se dizia! Zé Coelho deu a volta à mesa sempre olhando à esquerda, como se na parada estivesse desfilando, apontou com o taco matador à vermelha e sucessivamente:a tabela grande, a pequena, depois percorrendo-as todas até estacar o taco na preta. As conversas ao redor quedaram-se os olhares foram convergindo para o pano verde fortemente iluminado. –Nem que foras Tenente mais com todo o efeito do mundo vais lá, Zé, disse acertivo o Pintarolas. Zé arqueou a sobrancelha e, como vos disse, brandiu o taco arregaçou a perneira da calça deixando à vista a polaina, mudou a pega para a canha, alçou-se sensualmente para cima da mesa; espalmou a mão, visou, ensaiou a tacada, uma, duas vezes e á terceira disparou. Dois estalidos secos seguido de uns quantos impactos surdos nas tabelas novas foram marcando o percurso da branca que, como Zé no salão, rodopiava, animada pelo destino traçado em gracioso movimento uniformemente desacelerado deixando todos suspensos; tocou ao de leve na ultima tabela depositando, por fim, um tímido beijo na preta que lânguida só estremeceu.

-Ganda vaca, disse modestamente.
-Ganda vaca, o caralho, Zé
, disse o adversário na mesa, amigo nos olhos.

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