quinta-feira, 3 de maio de 2007

Lamento



Há palavras que valem por si. Estas mereceram um tratamento musical que parece ser muito difícil de superar. A musicalidade aliada à fluência da palavra, impregnadas de sentimento, tornam esta canção num marco da canção de protesto.
O poema relata uma realidade que não estava assumida por um grande número de pessoas. Vivia-se acriticamente, era assim.
"cabeças de pretos para os doutores"! - Não há muita gente que imagine a piada de mau gosto que está subjacente. Muita história está por fazer.
Falar mais sobre esta obra, é desmerecê-la?

d'aqui

Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações;
Naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.
O café vai ser torrado
pisado, torturado,
vai ficar negro,
negro da cor do contratado.
Negro da cor do contratado!
Perguntem as aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:
Quem se levanta cedo? quem vai a tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipoia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdém
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinquenta angolares
"porrada se refilares"?
Quem?
Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer
- Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
maquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os doutores?
Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande - ter dinheiro?
- Quem?
E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
- "Monangambééé..."
Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras
- "Monangambéé...'"


António Jacinto (Poeta angolano, 1924-1991) de Poemas, 1961

7 comentários:

Nanny disse...

Com outras palavras e outros sons de fundo, mas muitos lamentos se cantaram também por esse Alentejo durante anos, décadas...

Beijo da gata, que já veio de férias, uns diazitos no Alentejo profundo

Elipse disse...

bela alusão aos direitos humanos, que tão assustadoramente esquecidos andam nos nossod dias.
um louvor à tua sensibilidade!

DF disse...

Há que tempos não ouvia isto!:)

Anónimo disse...

Ere

emocionante: imagem , poema e Rui.


beijos

fuser

Erecteu disse...

Nanny,
Folgo a tua volta, esperamos a revolta ;)

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Elipse,
Estes, os "tortos humanos", são os herois que saltam espalmados para as páginas dos livros?

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Di,
Tal como a musica francesa, né?
Danças?

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Fuser,
Elas andam por aí, por vezes menos presentes.

psique disse...

como sempre tocante. beijo

Maria Arvore disse...

Em miúda sempre me pareceu este um tema triste e dorido como se tivesse em fundo o arrastar de cordas por escravos.
Mas a colonização portuguesa não teve nada disso, pois não?... ;)