sábado, 10 de março de 2007

Cá o rapaz é assim

Está pior que guardanapo de papel usado e amachucado.
Dói-lhe a cabeça da noitada e pelo que de si deu, para além do estabelecido e consensualmente convencionado.
Hesita mas acaba por se levantar. Atravessa o quarto vai até à kitchnet, aquece no microondas uma xícara do café que sobrara do dia anterior, liga a TV a que não presta a atenção, puxa dum Marlboro e senta-se à janela do quarto olhando nada.
O dia tá lindo, o sol sobeja caté met'inveja. Perdido em vagos pensamentos, dá por si a filosofar se um dia daqueles é ou não bom para a caça. Acaba por concluir que de caça não percebe nada. Deriva para a pesca e conclui que não, pois tem de ouvido, que a sombra na água espanta o peixe. Afinal actividades ao ar livre não são a sua especialidade; de captura de espécies não percebe patavina, tirando aquela a que amiúde se dedica nos centros comerciais, com técnicas apuradas em muitos anos de prática - tiro ao borracho. Para essa arte é preciso mais saber do que têm esses amadores domingueiros, de sequeiro ou de águas lusas.
As técnicas podem assemelhar-se: o engodo, a espera, o cerco ou o arrastar, mas para a sua arte há que dominar o canto e encanto à distância; é preciso o golpe de asa rasante, a abordagem subtil e o desconcertar para atacar com audácia temerária, mas acima de tudo há que ter calo e calma.
Quantas vezes não teve de enfrentar o insucesso? Aí, no infortúnio, é que se faz a diferença, se vê a classe do rapaz: retirada elegante e sorriso convincente impõe-se, pois fair-play não é só pá bola. Sobretudo nada de desatinos ou despeitados insultos entre dentes que cada peça que foge é uma lição a não esquecer e a juntar ao património acumulado para posterior tratamento de dados e correcção da acção.

Por fim esticou as pernas, entrelaçou as mãos atrás da nuca e estirou-se gozando um longo bocejo acompanhado de um som vagamente semelhante a loba com o cio. Levantou-se energicamente e dirigiu-se à pequena casa de banho. Passou água pela cara e pelo cabelo, escovou rapidamente os dentes e entregou-se por fim ao sagrado ritual de se barbear. Espalhou o foam pela cara, foi buscar a Wilkinson de três lâminas, mirou-a hesitando se as renovaria; decidiu que ainda não era altura de as trocar, esse prazer ficava adiado para posterior altura face ao agravamento do custo de vida. Colocou-se em frente ao espelho de pernas entreabertas em pose que adoptara do Saturday Night Fever. Em movimentos disco foi talhando e remirando-se ao espelho contornando lentamente o bigode e acertando as patilhas. Passou a máquina por água corrente e aspergiu a cara com água fria. Cheirou os sovacos e resolveu-se a levar mais longe a higiene, tendo o cuidado de não molhar a camisola interior. Dirigiu-se para a porta e antes de a fechar fez um exame rápido decidindo que deixara tudo em impecável ordem fechou a luz e a porta. Enfiou rapidamente as calças justas e pela cabeça a camisa que não chegara a desabotoar, enfiou a fralda dentro das calças, afivelou o largo cinto, calçou as botas que adorava: tacões em cunha., um pouco cambados, biqueira afiada e pespontos rematando a arte aplicada de sabor texano. Enfiou o colete que comprara baratíssimo a um marroquino armado em esperto, e que até a couro cheirava. Sacou de cima do cunhete de granadas que servia de mesa-de-cabeceira, o “Mont Blanc” genuíno que uma amiga lhe oferecera. Esticou o queixo e passou a boca do frasco directamente nas faces, estimulando a circulação com secas palmadas.
Decidiu que era altura de partir.
Fechou o apartamento a duas voltas de chave e lá foi pela galeria do sétimo piso: passada enérgica, arrastando ligeiramente os tacões, em direcção às escadas, enquanto ajeitava o lenço no pescoço assobiando.


9 comentários:

Maria disse...

Marlboro... se fumasse cigarros era essa a marca escolhida...

Um texto que se agarra à nossa roupa [e à nossa mente] como o cheiro de um cigarro.

beijinhos*

*a Youtube não se ficou a rir de mim... consegui roubar duas cenas! Vai ver o beijo e o apalpão ;)

Nanny disse...

Um verdadeiro cowboy dos tempos modernos... e ainda por cima, alentejano!

Depois de ter passado o meu dia a curtir uma valente enxaqueca (valente ela, que só se foi ao 3º comprimido, e mesmo assim deixou-me a cabeça oca) retive deste teu texto que: estás que nem loba com o cio... HAHAHA

Beijo da gata
(hoje de caneça oca)

Nanny disse...

Retifico:

CABEÇA OCA!


E o cowboy não continha nenhuma referência subliminar ao Brokeback Mointain... hihihi

Beijo

Fausta Paixão disse...

que os deuses te conservem a pose, o cheiro a cavalo e... sobretudo o cio.

Anónimo disse...

cigarros so faz é mal.....

Sandokan disse...

É o protótipo do macho latino, não é?
Então é como o meu mosquito no

www.lusoprosecontras.blogspot.com

Maria Arvore disse...

Ah Malboro Man
que a comemoração deixou-te como novo. ;)Afinal, um cowboy está sempre pronto a enfrentar as pradarias (com erre mesmo ;) ).
Beijinho com sabor a fumo

Joana disse...

Cheira-me a Texas, rodeo, cowboys, coletes e lenços... querem ver que o Texas é onde quer que haja Marlboro?!

Jinhos.

Abssinto disse...

...Talvez ele se encontre com o Grunho nalguma botica escura. Bom, muito bom texto. Gostei do Marlboro Man.

abraço