Sim, conheci-a no primeiro dia de escola. Fui dos primeiros a chegar. Na sacola de pano que a minha Mãezinha fizera, pouco havia: um lápis partido, um caderno novo de duas linhas, os sapatos e um pão com linguiça –Não o comas todo de uma vez, não sejas lambão, dissera-me aquela santinha; -Não penses que pode ser todos os dias assim, acrescentara ela. Viera primeiro de boleia na carroça do Águamorna, até aos quatro caminhos. Ao princípio foi bom, ia contente, ia prá escola! Depois deu-me o sono e devo ter adormecido porque o Água gritou: -Moço dum cabrão, salta Zeca. E eu saltei.
Vim por lá fora e para ali fiquei sentado no muro. Já me doía o cú e me regelavam as nalgas quando chegou o primeiro menino. Sentou-se lá longe a mirar, ora os meus, ora os pés dele. Não sou parvo, tirei a merda dos sapatos da sacola, calcei-os; o magano não foi capaz de me olhar outra vez, pantomineiro! Depois, ao mesmo tempo, começaram a chegar os outros que vinham pela mão das mães. Iam logo lá pra dentro e alguns desatavam a chorar quando as mães se queriam ir embora. Estava a ser giro, os meninos da vila são mesmo esquisitos. Já se me arrepanhavam os pés quando ela chegou. A mãe levou-a até ao portão, deu-lhe um beijinho, acenou à soussora e disse-lhe vai, e ela foi. O recreio foi ficando deserto. E tu, não vens?
Mandou-me sentar, fiquei lá no fundo, ainda bem. Via a sala toda e via tudo lá para fora. Depois disse muitas, muitas coisas, já não sei o quê. Mandou-nos tirar o material(?); tirei o caderno e o lápis; mandou-me tirar tudo; tirei o panito com a linguiça e riram-se todos, quase todos, só ela não se riu. Não percebi. A soussora, a rir, perguntou-me: -E o livro? –Qual livro? –só ela não riu. A professora saiu e voltou com um livro novinho, perguntou-me como me chamava, disse-lhe que era Zeca, e ela que era José, prantou-lhe o meu nome, deu-mo e disse que cuidasse dele.
Vim por lá fora e para ali fiquei sentado no muro. Já me doía o cú e me regelavam as nalgas quando chegou o primeiro menino. Sentou-se lá longe a mirar, ora os meus, ora os pés dele. Não sou parvo, tirei a merda dos sapatos da sacola, calcei-os; o magano não foi capaz de me olhar outra vez, pantomineiro! Depois, ao mesmo tempo, começaram a chegar os outros que vinham pela mão das mães. Iam logo lá pra dentro e alguns desatavam a chorar quando as mães se queriam ir embora. Estava a ser giro, os meninos da vila são mesmo esquisitos. Já se me arrepanhavam os pés quando ela chegou. A mãe levou-a até ao portão, deu-lhe um beijinho, acenou à soussora e disse-lhe vai, e ela foi. O recreio foi ficando deserto. E tu, não vens?
Mandou-me sentar, fiquei lá no fundo, ainda bem. Via a sala toda e via tudo lá para fora. Depois disse muitas, muitas coisas, já não sei o quê. Mandou-nos tirar o material(?); tirei o caderno e o lápis; mandou-me tirar tudo; tirei o panito com a linguiça e riram-se todos, quase todos, só ela não se riu. Não percebi. A soussora, a rir, perguntou-me: -E o livro? –Qual livro? –só ela não riu. A professora saiu e voltou com um livro novinho, perguntou-me como me chamava, disse-lhe que era Zeca, e ela que era José, prantou-lhe o meu nome, deu-mo e disse que cuidasse dele.
Tocou a sineta, fomos todos brincar. Eu fiquei a vê-los, corriam e empurravam-se, gritavam muito; ela ficou sentada no degrau do alpendre. Fui ao pé dela, mostrei-lhe o meu guelas. Olhou para ele e depois ficou a olhar para mim. As meninas têm uns olhos tão lindos, tão lindos… gostava de ter os olhos dela; entravam pela minha cabeça, doces, mas sem saber o que diziam. –Queres? Mordeu o lábio, atirou a cabeça para o lado, o cabelo esvoaçou para ficar poisado no ombro, quase loiro brilhava ao sol de Outubro, dia sete; ficou assim algum tempo, muito tempo. Fui-me embora, senti passos atrás de mim, pegarem-me na mão.
© Vicente Rodríguez-Madridejos Ortega (alterado o formato)
6 comentários:
Ai o caracinhas que a leitura das tuas prosas tem o condão de me emocionar. Talvez porque me recorde de quando as aulas começavam no dia 7 de Outubro ou porque a descoberta do outro em crianças é tão terra a terra.
Como tens boa memória, e guardas boas memórias do teu 1º dia de escola!
Gostei do teu 1º dia de escola, eu não fui descalça que as meninas da vila andavam sempre calçadas :-)
Beijo da gata
na miha memória há também sempre imagens da "pobreza" (era assim que se dizia dantes... hoje é politicamente incorrecto), do cheirinho a sabonete "Feno" que as meninas loirinhas deixavam no ar e no raio da caixinha de lápis de cor que só tinha meia dúzia... ler as memórias alheias desperta sempre as nossas. E tu tens uma maneira tão singela (outra palavra dos nossos livros, lembras-te?) de as escrever!
Sim, escreves bem.
Sim, gostei do menino que foste, és e sempre serás.
Sim, o teu blog é um dos melhores que já li.
Sim, deixo-te muitos beijinhos.
E sim sou a tua bolachinha.
Alinhando as palavras e "alimando" os pensamentos.
"(...) não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer; ...
in "Palavras em linha"
Este texto é dedicado a um amigo nosso, o Rui, que me pediu que lhe falasse do profundo Alentejo.
Confesso que não conheço esse Alentejo; tento imaginar e, concerteza, que nessa profundidade, se notícia chegasse deste relato, olhar-me-iam com aqueles olhos pequeninos e de brilho acutilante que poderiam dizer, quem sabe? - Panelêro de pantominêro.
Vocês são uma razão e uma força que me confunde. Baralham e tornam a dar, "the play must go on".
Um beijinho afectuoso.
Olá Erecteu
Lindo! Gostei!
Ao teu estilo,(e como eu gosto) fizeste uma bela descrição, imaginária ou não de um instante do passado. Descreves esses momentos de uma forma muito marcante, com foros de romance e que nos deixa empolgados.
Adorei, meu amigo.
Um abração
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