quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

O Guelas - O Sol que ilumina também cega

Chegámos ao fim da quarta. Fizemos exames. Fiz dois, o da Quarta e o de Admissão aos Liceus; alguns fizeram três como foi o caso do Zé Rolha que também fez o exame de Admissão às Escolas Industriais e Comerciais, não acreditava que se safasse mas, não sei como, lá se safou.
O Zeca como gostava de ser chamado, era um tipo estranho. Ficou Rolha porque o meu Pai conhecia o dele de ginjeira. Não enganava ninguém até que teve a sorte que merecia. Foi dentro quando quis organizar uma revolução lá na herdade.
Um dia à frente do rancho das mulheres disse que no dia seguinte não queriam trabalhar porque era um de Maio. O meu pai já sabia de tudo; uma semana antes, estivera lá a jantar o inspector Faria e alguns colegas do Pai, tinham informações de que se preparava qualquer coisa.

– Amanhã patrão, não trabalhamos.
– Não trabalham, não ganham.
– É assim mesmo patrão, não ganhamos e ganhamos, disse com um sorriso nos olhos.
– Depois veremos.
– Depois de amanhã, patrão, veremos.

Teimava em ter a última palavra. Era o melhor corticeiro da herdade, como fora o pai e o avô mas não saía em feitio aos velhos Rolhas. Fernando Pucarinho degenerara: assinava o nome e pouco mais, mas já desde miúdo, como aguadeiro, arvorava ares de sabichão.

* * *

Reunimo-nos antes de o sol raiar, o frio cortava – em Maio cerejas ao borralho.

Pusemo-nos a caminho do açude cantando.

"Boa herva é o poejo,
Que faz açorda aos ganhões.
É a primeira que vejo:
Cantar chibos em funções

Ôlivêras, ôlivêras,
Ao longe são ôlivais:
Por muito que tu me quêras,
Ainda te quero mais!

Por causa de um saramago
Arranqui um pé de trigo.
Olha a vontade que eu trago,
Amor, de falar contigo!"

O dia amanheceu coberto de uma neblina densa acompanhada de chuva miudinha. Tínhamos os pés molhados e gelados quando chegámos ao açude, o rancho estava animado porque o sol prometia vencer. Dirigimo-nos para os sobreiros grandes onde se fará a merenda.
Outro rancho chegou da Herdade dos Coutos, assumindo ao cabeço Manuel Pombinho cantava:
.
"Regala-me o tê cantar,
E o tê cantar me regala;
E ê regala-me ôvir dar
Reqebros à tua fala"
.
Ao que o nosso respondeu:
.
"O sol, quando nasce, é rê
E às dez horas é c'roado
E à tarde já vai doente,
E à noite é que é sepultado."
.
Os ranchos não tardaram em misturar-se. Apartei-me com Pombinho para conversar-mos. De repente a algazarra quedou-se. Olhei para o alto e vi a fila da guarda a cavalo que se dirigiu, a trote formando um largo arco.
-Manuel Pombinho , Fernando Pucarinho, estão presos. O resto segue para as herdades. Já. - esganiçou em falsete o tenente, sabre na mão.
Seguimos no meio de dos seis cavalos. No alto do cabeço, vi por cima do ombro, os ranchos apartados seguirem ladeados pelos cavalos e bestas. Recebi do tenente uma chibatada em pleno rosto que me cegou, ou foi do sol que despontava com toda a força?

* * *
No dia seguinte, franzina, a mana Bia destacou-se do rancho:
-Patrão, a partir de hoje, a gente trabalha oito horas.

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nota: quadras recolhidas:
in José Leite de Vasconcelos, OPÚSCULOS.Volume VII – Etnologia (Parte II),Lisboa, Imprensa Nacional, 1938

18 comentários:

Anónimo disse...

Vai ver pode ser que te tenha saído a sorte grande!
:)
Arrepiei-me ao ler o teu post.
Ainda me lembro bem dos hábitos. Em Portugal, naquele tempo, 3 ou 4 dias antes do 1º de Maio eram presos os "cabecilhas" para que não houvessem manifestações.

Nanny disse...

Trazes essa tua memória cheia de coisas simples e vividas.
De um Alentejo de outras épocas, que agora se começa, por vezes, a descaracterizar...

(passei-te no telhadinho na 2ª e 3ª fêras, nã me ligaste ninhuma... dormias certamenti...)

Bêjos da gata

Teardrops disse...

Erecteu
De que te desculpas, só se for por me oferecer chá numa altura destas...
oferece-me um bom vinho, ligeiramente aquecido pelo fogo da lareira, um tapete junto dela para disfrutar do calor do borralho, uma almofada para nela repousar...
algo que me aqueça e não que me acalme, homem de Deus!

Erecteu disse...

Marta,
Assim era, a ficção permite distorcer um pouco as coisas. Naqueles tempos, não teria havido a mínima hipótese.
Volta sempre e breve, um beijinho.

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Nanny,
Está prometido um reserva da Fundação Eugénio de Almeida. Se puderes avisa com tempo que convém Pô-lo a arejar.
Lareira e azinho, não falta, sofá também não, embora seja muito cioso dele ;)
Katespero, beijinhos

Rafeiro Perfumado disse...

Meu caro erecteu, como é bom ler quem nos consegue fazer visualizar o que escreve. Por momentos juro que andei em bandos, cantando e sacando a cortiça. Uma vénia.

Maria Arvore disse...

Nesses tempos não se podia exigir nada que era comer e calar que a punição vinha asinha. E contudo tinham coragem como a "franzina Bia".:)
Lembrei-me de em 1973, uns dias antes do 1º de Maio, terem vindo prender o monitor dos tempos livres que eu frequentava e nos ensinara o "Canto Moço" do Zeca.
Agora, estamos a caminhar para voltar a trabalhar mais de 8 horas, ter cada vez menos direitos, voltar a comer e calar e parece que já não há canções que nos encham de alegria e de tomates. ;)

Maria Arvore disse...

Ai desculpa que me esqueci de dizer-te que o 1º comentário é spam do mais purinho ;) que podes verter no caixote do lixo. ;)

Erecteu disse...

Raf,
Tem maneiras. Desde quando mestre faz vénia a ajudante de aprendiz?
Confesso que sabe bem lambidela de rafeiro que está isento de apresentação de "pedigri"
Volta sempre que tem esta casota à disposição.
Um abraço.

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Mana Bia-arvore,
Poderá vir o tempo em "que a cantiga é uma arma, eu já sabia" recuperará sentido, deixará de fazer sorrir de desdém muita gente.

O spam foi devidamente "arquivado" no local superiormente indicado.
Beijinhos.
Pa

Maria disse...

Devias reunir estas histórias e publicá-las. Mais gente devia ler isto.

beijinhos
dorme bem

brettinha do campo disse...

belo texto este, retrata muito bem tempos que nunca vivi.... por acaso falei hoje de liberdade.... estes tambem eram sonhadores para a epoca deles.... se calhar considerados lunaticos ?
hoje lutamos por outros direitos... outras vontades... eu tambem sou pelo sim! direito de esolha, apesar de achar que nunca teria coragem.... mas como o problema nao passa pela corragem mas sim pela necessidade de muitos sou pelo sim !

rui disse...

Olá Amigo Erecteu

Lindo! Maravilha!
Isto que acabaste de escrever, tem a marca do povo, tem o sentir de quem viveu a história e bem recente.
Estão aqui, bem retratadas a vertente politica de um real Alentejo e a componente que eu muito adoro, os cantares, essa tradição cultural que eu penso que ainda nos dias de hoje não tenha esmorecido.
Um bem-haja meu amigo por fazeres emergir esta parte da vida do Alentejo.

Um abração

Abssinto disse...

Jovem tu retesas-te de Aquilino Ribeiro! e eu gosto. Abraço

Lara disse...

Estas historias são maravilhosas. Adorei a parte dos cantares, até parece que vos estava a ver eheheheeh

muito giro!

como diz a maria, devias publicar estas historias sim!

beijo

Débora Azevedo disse...

Acho a historia engraçada... acho que devias leiloar lol mas (piadas a parte lol kakakaka) gostei do cheiro a menta...

Elipse disse...

despertas-me as memórias; a mim e aos outros que por aqui passam e levam os ouvidos a musicar...

ocorreu-me a imagem dos cavalos da GNR, intimidantes, ali no largo principal da vila do Barreiro, a dizerem aos meninos que saíam da escola (eu incluída) para irem para casa, exactamente no dia 1º de Maio, que em minha casa se dizia ser o dia do trabalhador, assim entre-dentes, não fossem os vizinhos ouvir. E o meu pai lá ia "celebrar" o dia para a fábrica... onde certamente o ambiente era de complot mas os ecos não me chegavam.

não fiz exame de admissão, livrei-me mas por pouco... pelo que... feitas as contas, devo ter um ou dois aninhos a menos :))

jp(JoanaPestana) disse...

Eu vinha do liceu quando o meu pai veio a correr enfiar-me na loja que ficava na praça do giraldo.Por detrás do vidro vi mulheres e homens a rebolar pela força da agulheta. Rodavam na calçada, e caiam, e rodavam e eram espezinhados pelos cavalos de olhos arregalados,que chegaram a deitar alguns dos guardas ao chão.
E depois entraram lá dentro e levaram-no, e quando mais tarde lhe perguntei onde tinha ido, respondeu-me que tinha ido fazer a revolução. Percebi então as marcas da chibata que ostentava no pescoço e nas mãos.
É sempre bom lembrar de onde viemos,que eu também sou das terras quentes.
toma beijo

Carla disse...

perfiro o sim a ver crianças maltratadas ou amontoadas em instituições...
beijinhos

Erecteu disse...

Maria,
Para quê? Elas estão aqui reunidas, convosco! é onde elas estão bem.
Beijinhos

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Brettinha,
Vi o teu post, gostei.
Não queiras viver tempos daqueles.
Eu mal os vivi, recorro a memórias emprestadas e simplesmente as fantasio, felizmente.
Beijinhos

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Rui,
Não esmoreceram, estão vivas. Anda daí, entremos num lugar ou aldeia e poderás ouvir,
Ai tênho uma cova no pêto...
O copo pago eu.
Um abraço.

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Ab generoso,
Cadê o folgo e a substância?
Um grato abraço

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B,
Não nos estavas a ver, não.
Eu sou o bardo Erectrix. Cá n'aldeia estou proíbido de cantar ;)
Beijinhos,

nota: a imagem não t'ava visível, passas a 00B, ordem para entrar. Andas sempre camuflada mas se t'apanho até chias pela mãeziha ;)
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débora,
Piadas à parte... volta sempre
Beijinhos.

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Elipse,
Fui contido, é verdade.
Beijihos.

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JP,
Arrepiaste-me!
Um beijinho p'a ti, um abraço para o teu PAI.

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Nadir,
Pois SIM, SIM
Beijinhos