quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

o pouco que muito bem sabe

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O dia ainda mal despontara, Nereu despertou, dirigiu-se à gelada cozinha, junto à chaminé quatro embrulhos. Sentou-se à mesa observando-os; avaliava-os pelo tamanho. Maria foi dar com ele a tiritar. –Não os abres,? Foi-se ao papel. –Com jeito, homem de Deus, ainda disse Maria; mas já era tarde; o primeiro embrulho esventrado revelou umas calças de fazenda, o segundo, com a ajuda da avó, como ele bem previu, uma camisola de lã, o terceiro, não podia ser, dois pares de meias, duas cuecas e duas camisolas interiores de manga comprida; do quarto, o grande, despontou uma samarra. Era assim o menino Jesus. Nereu viu apertar-se-lhe o coração. A esforço vestiu as calças para que Maria verificasse a altura da bainha, a pesada samarra com gola de pele, um pouco grande para o seu tamanho, encheu-o d’orgulho mas não lhe desembaciou os olhos.

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Ainda cedo, dois enormes tachos ocuparam as mesas montadas no pátio; destapados, ofereceram aos olhos e aos narizes os restos das consoadas daquelas cinco casas: bacalhau, pescada, polvo de meia cura, os legumes (batata, cenoura cebola, couve) ovos cozidos, tudo desfeito e migado era por fim regado com o azeite onde o alho, abundante cebola, e colorau tinham visto uma boa fervura.
Senhoras e senhores, é a festa da “roupa-velha”.
Um alvoroço, uma indisciplina. As conversas cruzam-se, risadas lançadas com corpos perigosamente balançados, repetidas loas ao manjar e às cozinheiras, ao tinto e ao branco que não lhe ficava atrás. Uma alegria em crescendo, as crianças não paravam quietas nos seus lugares, enquanto os adultos, vai mais um bocadinho e ai está tão bom, só mais uma colherita. Por fim a louça começava a ser levantada para ceder lugar às esperadas guloseimas que iam chegando: Doce de girimum da Conceição , filhozes da Vitória, rabanadas de vinho branco da Graça, sonhos da Adelaide, cada um trouxe o que tinha para dar, e Maria? Maria retirou-se. Retirou-se para voltar com uma travessa ainda mal encetada. Os convivas olharam desconfiados, nunca se vira tal coisa no Natal. Educadamente provaram e… choraram por mais, pois então. –Mas que é isto Maria? Maria, moita. Puseram-se a adivinhar: -Tem amêndoa. –Qual quê, tem, tem… mel com avelãs, não é Maria? Maria, ria-se e moita. –Vá lá Maria, o que é?

sopa dourada. E mais não disse.

Não parece bem, mas o termo é: atestados. Atestados e alegres, que ía longo o almoço de Natal, Maria da Graça lá se conseguiu fazer ouvir: -Meninas -ela que até, de qualquer delas, filha podia ser! -vamos ou não? As mulheres lá se foram, os homens deixaram-se estar; beberricando o bagaço, sorvendo o café; elas não tardaram a voltar com alguns embrulhos. Margarida saltitava de contente, Nereu deixou-se contagiar; Maria da Graça, fez de mestre cerimónias:
–O Menino Jesus à pressa fez trapalhada. Ele também é trapalhão sabiam? – risos na geral, chiadeira dos miúdos- Vejam que deixou na arrecadação estas prendas que dizem… Margarida e Nereu, tomem lá. Rasgaram os papeis sofregamente.
A Margarida calhou um jogo de cozinha e outro de enfermeira. –Com touca e tudo, gritava ela;
a Nereu, um carro de bombeiros que o deixou rouco, uma harmónica que o deixou mudo.

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Por fim, retirada a loiça suja, Manuel Carvalho sugeriu que fossem até ao salão dos bombeiros. -Tragam agasalhos que se vai pondo frio.
Cada um à sua maneira, aperaltados, formaram o rancho: os homens atrás se iam deixando ficar; de braço dado, em linha, seguiam as mulheres pelo meio da estrada; à cabeça de mão dada, as crianças eram alvo de ansiosa observação até que finalmente viram Nereu deitar a mão ao bolso e estacar primeiro, rodar sobre os calcanhares e depois soerguer lentamente à altura do rosto um par de luvas em lã cinzenta.
Desconcertado olhava para elas que se riam e aplaudiam;
a alegria delas perturbava o seu último agradecimento ao Menino Jesus

9 comentários:

Joana disse...

Nao ha direito! :P Tanta coisa boa logo pela manha (aqui)...

Jinhos.

jp(JoanaPestana) disse...

Estas leituras são uma delicia, Erecteu.
:-)*

Maria Arvore disse...

Ai, Erecteu,
quando te leio cada vez mais tenho a sensação de que estou a ver um filme. O Cinema Paraíso ou por aí.
É que as personagens são vivas, estão mesmo ali à frente a mexer e a gesticular. Em acções que ainda há coisa de 30 anos eram tal e qual assim. Mas há sempre também um encantamento, qualquer coisa de mágico como uma sopa dourada, uma harmónica ou umas luvas que nos faz desejar que a leitura-filme não acabe nunca.

Lara disse...

mais uma linda estória :))9

aiiiii já não posso ver comida lollllllll alias agora é tempo de dieta!

beijo

Elipse disse...

encantada com a ternurinha que pões na escrita, vejo as personagens e chego-me a elas.
Depois de colada será difícl não me identificar.
É engraçado apercebermo-nos da idade das pessoas pelo que escrevem e pela maneira como escrevem.
Colei-me aqui.

Erecteu disse...

JJ,
És sempre bem-vinda aqui, da mesma forma que nos abres a tua substante casa.
"Passei-me" com a magnífica prenda do Rui.
Um beijinho.

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JP, Obrigado
É porque a receita é fácil ;)
Um beijinho.

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Marie-baum,
Os filmes demasiado longos perdem o encanto, o ritmo;)
Um beijinho.

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Lolita,
Acabou-se a comida, entremos num cristão ramadão :)
Um beijinho.

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A escrita reflecte de facto a minha cultura.
A acção decorre num tempo, ainda que indefinido, pré-informático e sem skates até.
O espaço rural está ainda ligado a vapor; Pai Natal já veio mas as motoras só passam uma vez por dia e nem sequer param ali ;)

Um beijinho

Maria disse...

Que saudades, tantas, tantas, tantas...

Agora que já tenho tempo para me coçar posso visitar o teu blog com calma ^-^

beijinhos e bom 2007

Ana Luar disse...

Sabias k és um pecado para a minha gula?
Estou de dieta Natalicia (risos)

Abssinto disse...

Gosto do Nereu:) mais!mais! mais!

Abraço