Chegámos ao fim da quarta. Fizemos exames. Fiz dois, o da Quarta e o de Admissão aos Liceus; alguns fizeram três como foi o caso do Zé Rolha que também fez o exame de Admissão às Escolas Industriais e Comerciais, não acreditava que se safasse mas, não sei como, lá se safou.
O Zeca como gostava de ser chamado, era um tipo estranho. Ficou Rolha porque o meu Pai conhecia o dele de ginjeira. Não enganava ninguém até que teve a sorte que merecia. Foi dentro quando quis organizar uma revolução lá na herdade.
Um dia à frente do rancho das mulheres disse que no dia seguinte não queriam trabalhar porque era um de Maio. O meu pai já sabia de tudo; uma semana antes, estivera lá a jantar o inspector Faria e alguns colegas do Pai, tinham informações de que se preparava qualquer coisa.
– Amanhã patrão, não trabalhamos.
– Não trabalham, não ganham.
– É assim mesmo patrão, não ganhamos e ganhamos, disse com um sorriso nos olhos.
– Depois veremos.
– Depois de amanhã, patrão, veremos.
Teimava em ter a última palavra. Era o melhor corticeiro da herdade, como fora o pai e o avô mas não saía em feitio aos velhos Rolhas. Fernando Pucarinho degenerara: assinava o nome e pouco mais, mas já desde miúdo, como aguadeiro, arvorava ares de sabichão.
* * *
Reunimo-nos antes de o sol raiar, o frio cortava – em Maio cerejas ao borralho.
Pusemo-nos a caminho do açude cantando.
"Boa herva é o poejo,
Que faz açorda aos ganhões.
É a primeira que vejo:
Cantar chibos em funções
Ôlivêras, ôlivêras,
Ao longe são ôlivais:
Por muito que tu me quêras,
Ainda te quero mais!
Por causa de um saramago
Arranqui um pé de trigo.
Olha a vontade que eu trago,
Amor, de falar contigo!"
O dia amanheceu coberto de uma neblina densa acompanhada de chuva miudinha. Tínhamos os pés molhados e gelados quando chegámos ao açude, o rancho estava animado porque o sol prometia vencer. Dirigimo-nos para os sobreiros grandes onde se fará a merenda.
Outro rancho chegou da Herdade dos Coutos, assumindo ao cabeço Manuel Pombinho cantava:
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"Regala-me o tê cantar,
E o tê cantar me regala;
E ê regala-me ôvir dar
Reqebros à tua fala"
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Ao que o nosso respondeu:
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"O sol, quando nasce, é rê
E às dez horas é c'roado
E à tarde já vai doente,
E à noite é que é sepultado."
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Os ranchos não tardaram em misturar-se. Apartei-me com Pombinho para conversar-mos. De repente a algazarra quedou-se. Olhei para o alto e vi a fila da guarda a cavalo que se dirigiu, a trote formando um largo arco.
-Manuel Pombinho , Fernando Pucarinho, estão presos. O resto segue para as herdades. Já. - esganiçou em falsete o tenente, sabre na mão.
Seguimos no meio de dos seis cavalos. No alto do cabeço, vi por cima do ombro, os ranchos apartados seguirem ladeados pelos cavalos e bestas. Recebi do tenente uma chibatada em pleno rosto que me cegou, ou foi do sol que despontava com toda a força?
* * *
No dia seguinte, franzina, a mana Bia destacou-se do rancho:
-Patrão, a partir de hoje, a gente trabalha oito horas.
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nota: quadras recolhidas:
in José Leite de Vasconcelos, OPÚSCULOS.Volume VII – Etnologia (Parte II),Lisboa, Imprensa Nacional, 1938