sexta-feira, 10 de outubro de 2008

João Silva IV

Deixo aqui o último testemunho que prefacia o Rocha Cheneider.
João Silva tem dois filhos que lhe sacaram os "defeitos", dedicou-se à agricultura e pecuária, lá para os lados da Cela, imagino que tivesse plantado árvores, e deixa-nos um belo livro. Nada disto seria necessário que tivesse feito para ser um grande homem, o caracter a isso o condenou, se nasceu com ele ou se ele o construiu, não sei nem me importa. A ele lhe devo também o, pouco, que tenho de bom.



«ISSO FAZ-ME LEMBRAR UMA HISTÓRIA...»

A memória mais antiga que temos dele é do som da sua voz, quando ainda lhe cabíamos no colo e ele nos embalava com os mistérios do mato, dos ani­mais, do mundo mágico do cinema, do teatro e da fotografia.
«Isso faz-me lembrar uma história...» Quantas vezes ao longo dos anos não ouvimos isto? Quantas vezes não bastava um pequeno pormenor, uma palavra, um vulto que passava, uma expressão escutada, uma música, uma fotografia, uma pintura, a referência a um livro ou autor, para que ele fosse por aí fora, desfiando memórias deliciosas de um tempo perdido.
A família, os amigos, todos sabem como qualquer detalhe serve para que mais um pedaço de uma vida cheia nos fosse desvendado.
«Isso faz-me lembrar uma história...» E lá ia ele, pelas ruas da Alfama dos anos 20 do século passado, pelos estúdios da Tobis da época áurea do cine­ma português, pela prisão dos Açores, por um recanto remoto da Angola dos anos 50.
Estivéssemos à mesa de jantar, numa tertúlia com amigos; estivesse ele no autocarro da Carris, apanhado anos a fio, manhãzinha cedo, a caminho da CGTR Tudo servia para nele despertar uma memória. E quem o ouvia sorria, na certeza de encontrar ali uma história política, um pormenor pitoresco, o descrever de um tipo humano, tantas vezes razões para se emocionar.
Vantagens dos cabelos brancos, dirão da facilidade com que desfiava memórias como quem respira. Vantagens de quem viveu uma vida cheia, dizemos nós. De quem lutou pela liberdade num tempo em que era palavra proibida, de quem privou com vultos maiores do cinema português, de quem palmilhou (a expressão é a correcta, foi mesmo palmo a palmo) aquele semi-continente selvagem e maravilhoso que é Angola.
Mas o João que nós conhecemos não é só o magnífico contador de estorias. É um pai atento e um avô dedicado. Firme na hora de nos fazer estudar e respeitar os compromissos. Pleno de energia quando nos levava a nadar, a jogar à bola ou a correr pela marginal. Cada um de nós tem as suas ideias e seguiu livremente o seu caminho. Mas todos, sem excepção, fomos beber ao que o João nos ensinou quando se tratava de respeitar o próximo, lutar por uma sociedade mais justa ou não perdermos nunca a capacidade de nos indignarmos perante uma injustiça.
Há uns poucos anos, quando as pernas deixaram de lhe responder com a rapidez que a cabeça pedia, decidiu-se. «Como é isso dos blogues?», pergun­tou, naquela curiosidade permanente de miúdo, com os olhinhos a brilhar. De então para cá, dezenas, centenas de histórias foram sendo postas a escrito. Sem outro critério que não fosse o ir pondo no papel (ou melhor, no ecrã) episódios que viveu. Ingénuos, uns, dolorosos outros, alegres, outros ainda. Mas episódios que dificilmente nos deixam indiferentes. Não é uma história do último século que aqui é posta a escrito. Longe disso. Mas são histórias, episódios, que ajudam a perceber aquilo que somos e de onde vimos.
«Isso faz-me lembrar uma história...»


A Família


Bolero de Ravel (adaptação para sete pianos) - A Eremine-A Rosado-F Neves- J Mota- L Filipe Sá-M Coelho-P Burmester

3 comentários:

Fernando disse...

Fantástico...

Declaro-me fã deste Blog, pelos conteúdos, mas muito pelas músicas...

Tenho vontade de as "roubar" mas faltam-me conhecimentos...

Erecteu disse...

Obrigado Fernando,vou enviar-te um mail com dicas.
Um abraço.

Maria Arvore disse...

É curioso como a vida do próprio João nos conta a história do século XX pelo lado tecnológico - fotografia, cinema, blogues - e pelo lado sócio-político - antes e depois da ditadura e o pós-25 de Abril- mostrando que empregou a sua criatividade e o seu sentido de justiça na construção desse mesmo século.
Obrigada ao João pelo legado.
Obrigada ao Erecteu por o partilhares.